Inquéritos conduzidos pela Polícia Federal (PF) em 13 estados e no Distrito Federal podem resultar no indiciamento de mais de 100 suspeitos de envolvimento direto e indireto na fraude bilionária na Previdência Social (INSS), segundo apurou a Gazeta do Povo. A polícia também tenta provar quanto dos cerca de R$ 6,3 bilhões repassados a sindicatos e associações das folhas de pagamento de aposentados e pensionistas são fruto de conduta criminosa.
O número de indiciamentos ainda pode aumentar conforme o andamento das investigações, que ainda não têm data para serem concluídas, segundo uma fonte da PF envolvida diretamente na investigação que pediu para não ter o nome revelado por tratar de questões sensíveis. A reportagem apurou que as investigações da polícia seguem em pelo menos três diferentes frentes:
- Levantar provas contra os servidores e a antiga cúpula do INSS suspeitos de operacionalização e facilitação dos descontos
- Descobrir quais os mecanismos usados para que a fraude fosse aplicada em massa contra milhões de beneficiários
- Provar que dirigentes de associações e sindicatos e empresários receberam recursos furtados dos aposentados e tentar recuperá-los
A PF também quer identificar valores exatos desviados, tendo em vista que os R$ 6,3 bilhões levantados em uma investigação feita pela Controladoria-Geral da União (CGU) correspondem ao valor total repassado entre 2019 a 2024 pelo INSS da folha de pagamento dos aposentados para sindicatos e associações. Não se sabe ainda quanto do montante corresponde a fraudes e quanto a operações legais. Um levantamento feito por amostragem pela CGU apontou um índice de 97% de fraude, em que aposentados contatados em 1.300 entrevistas disseram não ter autorizado os débitos em suas contas.
Oficialmente a PF não comenta investigações em curso, mas o foco inicialmente esteve na apuração do envolvimento de servidores e como funcionava o esquema com as associações e sindicatos que efetuavam as deduções ilegais.
Em seguida a apuração se expandiu aos representantes e empresários ligados a essas entidades. Os empresários são suspeitos de terem recebido parte dos recursos que foram ilegalmente para os cofres dos sindicatos e associações por meio de contratos de serviços. A suspeita é que o papel deles seria enviar dinheiro de propina para servidores do INSS e possivelmente políticos envolvidos no esquema.
Esses empresários e representantes também atuavam como articuladores, colocando novos sindicatos em contato com servidores para participar do esquema. Um dos suspeitos que ganhou notoriedade no caso é Antônio Carlos Camilo Antunes, o “Careca do INSS”, que é suspeito de ter movimentado R$ 53 milhões em recursos furtados dos aposentados por meio de suas empresas.
Em paralelo às investigações da PF, começou nesta semana no Congresso uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) para apurar as mesmas fraudes no INSS que são objeto de investigação da polícia. O senador Carlos Viana (Podemos-MG) assumiu a presidência e o deputado Alfredo Gaspar (União-AL) a relatoria. O plano de trabalho da comissão prevê a investigação de fraudes ocorridas na Previdência Social desde 2015, abrangendo os governos de Dilma Rousseff (PT), Michel Temer (MDB), Jair Bolsonaro (PL) e Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Enquanto a PF tenta entender como o esquema foi arquitetado e se desenvolveu, envolvendo servidores, líderes sindicais e empresários, a CPMI pretende também analisar as responsabilidades políticas e promete convocar ex-ministros, ex-presidentes do INSS e representantes de órgãos como PF, CGU, Defensoria Pública da União (DPU) e Tribunal de Contas da União (TCU) para esclarecer possíveis desvios e responsabilidades.
Polícia demorou um ano para começar a fazer investigação abrangente
A Polícia Federal havia recebido as primeiras denúncias de fraudes no INSS no primeiro semestre de 2023, mas não percebeu a magnitude do caso e o grau de envolvimento da cúpula do INSS. Por isso tratou as denúncias como crimes de estelionato comuns e as remeteu para várias unidades da Polícia Civil, o que atrasou as investigações sobre a rede criminosa por pelo menos um ano.
A Controladoria-Geral da União começou suas investigações em 2023. Um ano depois, o órgão divulgou um relatório apontando as fraudes e a PF teve que entrar a fundo no caso.
O então ministro da Previdência Social, Carlos Lupi, foi informado sobre as suspeitas de irregularidades no INSS também em junho de 2023 no Conselho Nacional de Previdência Social por Tonia Galleti, representante do Sindnapi (Sindicato Nacional dos Aposentados, Pensionistas e Idosos), mas não tomou medidas efetivas para que a fraude fosse investigada. Ele afirmou ter pedido uma investigação e culpou subordinados pela falta de resultados.
Destinação de recursos desviados de aposentados é investigada
As investigações da PF, neste momento, também rastreiam a destinação dos recursos desviados. O objetivo é tentar uma eventual recuperação dos capitais, além da responsabilização penal dos mentores, articuladores e beneficiados. Até o momento, por decisão judicial, foi bloqueado cerca de R$ 1 bilhão das entidades ou suspeitos de envolvimento no esquema.
Até o momento, oito pessoas foram presas. Seis prisões ocorreram no estado do Sergipe. As outras duas no Ceará. Segundo a Polícia Federal, os presos são representantes das associações investigadas. Dezenas de outras pessoas seguem na mira das apurações como suspeitas de terem sido beneficiadas e participarem de toda a articulação da fraude. A PF já teria indícios consistentes para indiciar mais de uma centena de suspeitos.
Inicialmente 12 entidades que receberam os descontos do INSS estão no rol das apurações da PF, mas não se descarta a participação e o envolvimento de dezenas de outras.
Quanto à possível participação direta de servidores do INSS, além da PF, o próprio Instituto diz ter instaurado uma dezena de processos internos para apurar a conduta de seus funcionários. Isso porque os nomes dos aposentados e pensionistas foram inseridos de forma automática e em massa no sistema que permitia os descontos. A PF já identificou que isso ocorreu a partir de pessoas que tinham autorização e acesso ao sistema da Previdência.
A antiga cúpula do INSS está sob investigação na PF e deve ser alvo da CPMI. O grupo se desligou após a primeira fase da operação, mas nega envolvimento e participação na fraude. O então presidente do INSS, Alessandro Stefanutto, foi um dos demitidos.
Parte da investigação tem sido conduzida com base na análise das milhares de provas colhidas durante as diferentes fases da operação. A PF ainda não tem uma data para concluir o relatório, diante do volume intenso de itens apreendidos e a chegada de novos materiais a cada nova operação policial.
Há a expectativa de que as diferentes frentes de apuração nos estados resultem em um relatório único. O documento deve ser remetido ao Supremo Tribunal Federal (STF), que vai determinar se os casos permanecerão na Corte ou se haverá designação à Justiça Federal em primeira instância em casos específicos. Como a PF encontrou evidências de envolvimento de parlamentares, parte dos processos deve ficar no STF pelo fato de suspeitos terem foro privilegiado.
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Como será o trabalho de perícia em milhares de documentos apreendidos
Uma das frentes de investigação considerada essencial pela Polícia Federal diz respeito à perícia dos milhares de documentos e equipamentos eletrônicos apreendidos, tanto no INSS quanto nas entidades investigadas e em poder de suspeitos durante cinco etapas da operação “Sem Desconto”. Esses itens seguem em poder dos peritos da Polícia Federal.
O trabalho de análise ainda deve se estender por meses diante do volume elevado de arquivos na fila para análise. Alguns aparelhos eletrônicos tiveram arquivos apagados e devem passar por tentativas de recuperação de dados eletrônicos.
O trabalho de perícia tenta levantar provas de como os suspeitos forjaram assinaturas fraudulentas e como arquivos de áudio gravados em ligações telefônicas foram manipulados pelos fraudadores. Policiais suspeitam que esses áudios funcionavam como uma forma de falsificar a autorização dos beneficiários para descontos em seus benefícios, mas na prática eram gravações manipuladas ou totalmente fabricadas.
Em muitos casos, os áudios apresentavam trechos curtos de supostas conversas telefônicas, nos quais o aposentado aparecia dizendo “sim” ou confirmando dados, como o CPF. No entanto, as investigações da PF apontaram que as gravações eram editadas para criar a falsa impressão de consentimento. Houve situações em que as vozes não pertenciam aos beneficiários.
Essas gravações falsas eram então enviadas ao INSS como prova de adesão a “associações” e de supostos acordos firmados pelos aposentados. Com isso, os descontos eram aplicados diretamente nos benefícios. As entidades utilizavam centrais telefônicas e robôs para realizar ligações em massa, ampliando o alcance da fraude e dificultando que os segurados percebessem a manipulação.
Apesar da apreensão de recursos de suspeitos, quem está fazendo o ressarcimento dos descontos indevidos é o governo federal. Por enquanto, não há definições de responsabilizações das entidades para que façam a devolução. Mais de quatro milhões de brasileiros, entre aposentados e pensionistas, foram identificados vítimas do golpe.
Os valores retirados ilegalmente das contas de aposentados chegavam a cerca de R$ 70 mensais. Eles eram repassados a associações conveniadas ao INSS, que alegavam oferecer serviços como assistência jurídica, financeira e de saúde. Na prática, muitos aposentados sequer conheciam essas entidades, não eram filiados e jamais consentiram com os descontos, que continuavam sendo processados diretamente na folha de pagamento.
O esquema se apoiava em Acordos de Cooperação Técnica (ACTs) firmados entre o INSS e essas associações, que obtinham acesso a dados dos segurados. Diversas entidades não apresentaram a documentação exigida para operar e, ainda assim, continuaram funcionando e recebendo os valores descontados.
Fonte: Gazeta