A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Segurança Pública sofreu modificações significativas com as emendas apresentadas na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados, onde foi aprovada em julho, e tende a perder força – ao menos em relação ao que o governo federal desejava – para a próxima etapa da tramitação. O texto, de autoria do Ministério da Justiça e Segurança Pública, será analisado por uma Comissão Especial da Câmara e, posteriormente, irá a plenário.
Parlamentares da oposição e analistas avaliam que o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) pode até desistir da iniciativa, após o que chamaram de uma “dissecação” da proposta. Apesar das alterações, a avaliação deles é de que tudo o que está contido na PEC já está previsto em lei.
O relator da matéria, deputado Mendonça Filho (União-PE), promoveu alterações importantes no texto original. As principais foram:
1. Retirada da competência privativa da União sobre segurança pública
A emenda elimina o trecho que atribuía exclusivamente à União a competência para legislar sobre normas gerais de segurança pública, defesa social e sistema penitenciário.
Segundo Mendonça Filho, essa centralização contraria o modelo federativo previsto pela Constituição, que estabelece o compartilhamento de responsabilidades entre União, estados e municípios. A mudança, segundo o relator, evita a ruptura do modelo cooperativo entre os entes federativos.
2. Fim da exclusividade investigativa das polícias judiciárias
Outra emenda retirou a palavra “exclusiva” do trecho que conferia à Polícia Federal e às Polícias Civis a atribuição exclusiva de apurar infrações penais.
Para o relator, a exclusividade investigativa violaria a separação de poderes, enfraqueceria o Ministério Público e comprometeria a atuação de Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs), limitando a fiscalização exercida pelo Legislativo.
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Analista defende o aperfeiçoamento da PEC
Apesar das mudanças, a proposta ainda é alvo de críticas da oposição, que alerta para o risco de centralização excessiva da União na área da segurança e falta de efetividade prática na PEC. Analistas consideram que a PEC da Segurança Pública precisa ser profundamente reformulada ou retirada de pauta.
Eles reconhecem, porém, que a retirada da exclusividade da União na formulação de normas gerais e a flexibilização das competências investigativas representam derrotas para o governo e avanços para estados e municípios.
“Isso representa uma derrota para o governo e, em especial, para o ministro Ricardo Lewandowski, que trata o tema como prioritário. A proposta tinha um viés claramente centralizador”, afirmou o advogado Alex Erno Breunig, especialista em segurança pública.
Procurado pela Gazeta do Povo, o Ministério da Justiça e Segurança Pública informou que só se manifestará após a apreciação final da medida.
A PEC foi aprovada na CCJ com 43 votos favoráveis e 23 contrários, e agora segue para análise na comissão temática que foi criada pelo presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PE).
“Determinei a criação da Comissão Especial para análise da PEC da Segurança Pública. O projeto já foi aprovado na Comissão de Constituição e Justiça. Agora, demos mais um passo para aperfeiçoar a matéria e entregar a melhor versão. Daremos uma resposta contra a crescente violência no país”, escreveu Hugo Motta em uma rede social, em apoio à medida do governo.
Oposição diz que PEC não resolve problemas na área da segurança
O senador Sergio Moro (União-PR), vice-presidente da Comissão de Segurança Pública do Senado e ex-ministro da Justiça e Segurança Pública no governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), afirmou que, apesar dos avanços no relatório aprovado, a PEC não resolve os principais desafios da segurança pública no país.
“Eu sempre disse que a PEC da Segurança é uma cortina de fumaça. Não resolve o problema real. O que precisamos é de legislação infraconstitucional e de ações concretas no dia a dia, e não de mudanças na Constituição que pouco ou nada impactam na ponta”, disse o senador à Gazeta do Povo.
Moro reconheceu pontos positivos, como a preservação da capacidade investigativa do Ministério Público e a reafirmação de que a competência para legislar sobre segurança é compartilhada entre União, estados e municípios. “Isso foi um avanço. O texto anterior ameaçava centralizar demais atribuições que, na prática, pertencem a todos os entes federativos”, destacou.
Ainda assim, o senador defende que o texto precisa passar por discussão mais aprofundada: “Agora que superou a admissibilidade, o debate precisa avançar no mérito. Quem sabe o texto possa ser aprimorado. Mas, da forma como está hoje, ele não resolve o problema da segurança pública”, reforçou ao defender a retirada da pauta.
O deputado Coronel Tadeu (PL-SP) também criticou a PEC. Para ele, apesar das alterações aprovadas na CCJ, a proposta permanece excessivamente burocrática e distante da realidade enfrentada por profissionais da área e pela população. “A proposta não apresenta soluções concretas para problemas como a falta de integração operacional, investimento em inteligência ou valorização dos agentes de segurança”.
Segundo ele, a aprovação, sem reformulações mais profundas, pode significar apenas a criação de novas estruturas legais sem impacto real. O parlamentar defende a rejeição total ou uma reformulação substancial da matéria.
Em contrapartida, a deputada Talíria Petrone (PSOL-RJ) afirmou que o ponto mais importante da medida é a intregração das polícias. “Não é possível que não se entenda a importância da integração das polícias. Isso é fundamental para enfrentar o crime organizado. A gente precisa de uma base de dados nacional, de normas gerais coordenadas pelo Sistema Único de Segurança Pública”, afirmou a parlamentar ao site da Câmara.
Especialista defende gestão eficiente e cooperação federativa como pilares da segurança pública
O especialista em Direito Penal Gauthama Fornaciari avalia que o debate sobre a reforma constitucional na área da segurança pública desvia o foco do que realmente precisa ser feito: a gestão eficaz da legislação já existente. Segundo ele, o Brasil já possui um arcabouço legal consolidado, especialmente após a criação do Sistema Único de Segurança Pública (Susp) pela Lei 13.675/2018, ainda no governo do ex-presidente Michel Temer (MDB), que estabelece uma política nacional de segurança baseada na cooperação entre União, estados e municípios.
Fornaciari sustenta que, embora a União deva exercer um papel de coordenação, a retirada da exclusividade de competências normativas e investigativas do texto da nova PEC apenas reforça entendimentos já pacificados.
Ele lembra que o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu desde 2015 o poder investigatório do Ministério Público, e que outras figuras, como CPIs e até detetives particulares, também têm respaldo legal para realizar investigações, ainda que com limites específicos.
Para o jurista, a PEC da Segurança peca por insistir em mudanças desnecessárias, quando o caminho mais eficiente seria fortalecer a aplicação da legislação ordinária.
O especialista destaca ainda a importância de se promover uma gestão baseada em dados e objetivos concretos, com metas nacionais compartilhadas, maior transparência e cooperação entre os entes federativos e os órgãos de Justiça e segurança.
Para Fornaciari, a melhoria da segurança pública depende menos de uma reforma constitucional e mais de um esforço coordenado de gestão pública, com foco na eficiência, transparência e cooperação federativa. Segundo ele, a reforma estrutural do setor passa pela implementação de políticas públicas já previstas em lei, e não pela centralização excessiva de poder na União.
Governadores e prefeitos ainda reagem contra centralização
A tentativa do governo federal de concentrar sob sua alçada a coordenação normativa e operacional da segurança pública encontrou resistência entre governadores e prefeitos, principalmente das regiões Sul e Sudeste. Esses estados contam com maior estrutura local e autonomia administrativa, e criticam a ausência de fontes de financiamento claras.
Para especialistas, as emendas de Mendonça Filho garantem maior equilíbrio federativo ao manter a distribuição de competências e evitar que guardas municipais e outras instituições fiquem subordinadas a uma diretriz federal única, por exemplo.
“Ao retirar a exclusividade investigativa das polícias judiciárias, a proposta evita o esvaziamento das prerrogativas do Ministério Público e do Congresso Nacional, preservando os mecanismos de fiscalização”, observa o advogado Márcio Nunes, especialista em Direito Penal.
O investigador aposentado das forças federais de segurança Sérgio Gomes, especialista em segurança pública, também defende as mudanças feitas pela CCJ. Para ele, o texto original da PEC ameaçava a autonomia dos estados e municípios e não deixava claro quem arcaria com os custos do novo modelo.
“Os estados temiam ser os responsáveis por bancar sozinhos a segurança, enquanto a União centralizaria as decisões. Isso representava um risco, especialmente por não haver um debate amplo com a sociedade e com os entes federativos”, alertou.
Gomes avalia que, apesar de melhorar, a medida ainda precisaria de um amplo debate e reforça que basicamente tudo o que consta na PEC já está previsto em leis específicas.
Entidades municipais também manifestaram reocupação com PEC
A justificativa do governo ao propor a PEC foi constitucionalizar o Sistema Único de Segurança Pública (Susp) e fortalecer a coordenação nacional no combate ao crime organizado. Mas, para Breunig, a proposta não inova.
“Tudo o que consta na PEC já existe em lei. O que falta é colocar em prática e aportar recursos, sem tirar dos estados e municípios os papéis que lhes são de direito”, avaliou.
Entidades representativas de municípios também criticaram duramente a proposta. Em audiência na CCJ, o presidente da Frente Nacional de Prefeitas e Prefeitos (FNP), Eduardo Paes (PSD), prefeito do Rio de Janeiro, apontou falhas na divisão de responsabilidades e ausência de previsão de repasses do Fundo Nacional de Segurança Pública às guardas municipais.
O presidente da Confederação Nacional de Municípios (CNM), Paulo Ziulkoski (MDB), foi ainda mais contundente. Segundo ele, a PEC, da forma como estava, representava “a pá de cal” para os municípios. Ele também criticou a inclusão de dispositivos já previstos em lei e a falta de diferenciação entre as realidades locais.
“A proposta trata igualmente grandes cidades, como o Rio de Janeiro, e pequenos municípios com menos de 50 mil habitantes, ignorando suas diferentes capacidades operacionais e orçamentárias”, pontuou Ziulkoski.
Fonte: Gazeta