O Ministério Público Federal (MPF) retomou as críticas à tese do marco temporal para a demarcação de terras indígenas, que teve a fase de conciliação no Supremo Tribunal Federal (STF) encerrada em junho sem um consenso. Em uma audiência realizada na Câmara dos Deputados na última semana, a coordenadora da Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais do órgão, Eliana Torelly, reiterou que a legislação aprovada pelos parlamentares e vetada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) é “inconstitucional” e “dispensável”.
A norma define que os povos indígenas só têm direito à demarcação das terras que ocupavam em 5 de outubro de 1988 – data da promulgação da atual Constituição –, e foi aprovada poucos dias depois de o STF rejeitar a tese no julgamento de um recurso. O entendimento da Corte foi de que a limitação ignora o que considera como um histórico de invasões, remoções forçadas e violência sofrida pelas comunidades.
“Um dispositivo legal dessa natureza desconhece a oralidade que é prevalente entre os povos indígenas e fere frontalmente o direito dos nossos povos de se manifestarem de forma culturalmente adequada, que é o que a nossa Constituição garante”, disse Eliana durante a audiência.
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A procuradora ainda ressaltou que a norma traz “retrocessos” e impõe entraves burocráticos à demarcação, como a obrigatoriedade de que declarações indígenas para laudos antropológicos sejam feitas apenas em audiência pública ou gravadas em vídeo. Outro ponto questionado pelo MPF é a previsão de indenização por benfeitorias realizadas após o início do processo de demarcação, além do direito de retenção da posse por ocupantes não indígenas.
Para a instituição, tais dispositivos incentivam a permanência de conflitos e prejudicam a efetividade dos direitos indígenas, indo contra o princípio da proteção integral. Desde 2021, o MPF mantém uma atuação crítica ao marco temporal, tratando-o como cláusula incompatível com a Constituição e com compromissos internacionais do Brasil.
Em abril de 2024, o procurador-geral da República, Paulo Gonet, pediu formalmente ao STF que declarasse a inconstitucionalidade de trechos da legislação aprovada pelo Congresso, alegando que ela incorporava retrocessos jurídicos. O MPF defendeu que a Corte desse prioridade às ações que contestam a norma, reforçando que os direitos indígenas não poderiam ser limitados a uma data específica e que constituem cláusula pétrea constitucional.
O STF já declarou, em setembro de 2023, a inconstitucionalidade da tese do marco temporal por 9 votos a 2. A decisão rejeitou a limitação de demarcação apenas para terras ocupadas em 5 de outubro de 1988, considerando que tal regra ignora expulsões e invasões.
Após o julgamento, o ministro Gilmar Mendes conduziu uma comissão de conciliação entre representantes indígenas e empresários para discutir ajustes na legislação. No entanto, mesmo com 23 audiências realizadas até junho de 2025, não houve consenso sobre alguns pontos-chave, como indenizações, participação no processo demarcatório e critérios de posse. Entre os motivos está a retirada unilateral da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) por considerar o processo como “ilegítimo e inconstitucional”.
“O espaço de negociação foi instituído sem a devida consulta aos povos indígenas, em clara violação ao artigo 6º da Convenção 169 da OIT, ignorando recursos e denúncias apresentados ao longo do tempo pela organização, reconhecida por sua legítima representação indígena”, afirmou a entidade em nota.
No ano passado, Lula reconheceu que o veto ao marco temporal foi uma “questão política” como um recado de seu governo em mais um embate com o Congresso.
“Eu vetei por uma questão evidentemente política, era preciso que a sociedade e a humanidade soubessem que eu vetei o marco temporal que eles aprovaram e derrubaram o veto”, afirmou,
O STF já havia decidido, ainda durante a tramitação da lei no Congresso, que o marco temporal é inconstitucional, o que aprofundou a crise entre o Legislativo e o Judiciário. Os senadores, principalmente, alegaram que a Corte fez uma “usurpação de poderes” ao proferir decisões que criam precedentes, como se estivessem legislando sobre determinados temas – a Constituição é clara em definir que a elaboração de leis é uma atribuição dos parlamentares.
Fonte: Gazeta