A tentativa de importadores de óleo diesel de aumentar seus lucros e uma política de preços artificiais da Petrobras adotada em 2023 colocaram o Brasil na rota da nova onda de tarifas comerciais dos Estados Unidos. Por comprar produtos que a Rússia usa para financiar a invasão da Ucrânia, o país pode ver a tarifa de 50% aplicada a produtos de exportação dobrar para 100% a partir desta sexta-feira (8).
Em 2024, o Brasil se tornou o segundo maior importador de diesel da Rússia, adquirindo cerca de sete milhões de toneladas do produto por um valor aproximado de R$ 38 bilhões. Antes do início da guerra na Ucrânia, os Estados Unidos eram o maior fornecedor do Brasil.
Mas, a partir de 2022, após receber sanções pesadas do Ocidente, Moscou começou a dar descontos de até R$ 0,15 por litro do combustível, e empresas importadoras privadas trocaram de fornecedor para aumentar seus lucros, sem levar em conta as atrocidades cometidas pelo Kremlin na guerra.
No ano seguinte, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) iniciou seu terceiro mandato e agravou a situação, criando uma política artificial de preços da Petrobras e oferecendo forte apoio político ao ditador Vladimir Putin.
Assim, o Brasil deixou de seguir a política de Paridade de Preço de Importação (PPI) para o óleo diesel vendido pela Petrobras. Segundo analistas ouvidos pela reportagem, isso resultou em preços artificialmente mais baixos praticados pela estatal e fez com que importadores brasileiros privados se tornassem dependentes do diesel russo – subsidiado por Moscou – para se manterem competitivos no mercado. Os russos então começaram a reduzir gradualmente os descontos, colocando os importadores em situação ainda mais difícil.
Na terça-feira (5), os Estados Unidos voltaram a indicar que podem aplicar tarifas a países que mantêm relações comerciais com a Rússia, sobretudo na compra de petróleo, combustíveis e fertilizantes. A sinalização foi feita pelo presidente Donald Trump durante um evento na Casa Branca, como parte da estratégia de aumentar a pressão sobre Moscou para pôr fim à guerra na Ucrânia.
“Vamos tomar uma decisão sobre sanções a países que compram energia russa após a reunião de amanhã [quarta-feira] com a Rússia”, disse Trump, sem mencionar o Brasil.
A reportagem da Gazeta do Povo buscou contato com o governo brasileiro para saber como avalia e lida com a situação e se há estudos sobre os possíveis impactos das sanções secundárias, mas não obteve retorno até o fechamento da matéria.
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Desde maio de 2023, a Petrobras abandonou oficialmente a política de Paridade de Preço de Importação (PPI), que vinculava os valores dos combustíveis à cotação internacional e ao câmbio. A nova estratégia permite que a empresa dê um peso maior à produção interna para a definição do preço no mercado nacional. O preço ficou mais baixo, e importadores privados passaram a buscar fornecedores externos com diesel ainda mais barato para poderem sobreviver. Como a Rússia começou a dar descontos significativos, passou a vender muito mais para o Brasil.
A presença da Rússia no mercado brasileiro de diesel se expandiu rapidamente: as importações saltaram de US$ 95 milhões, em 2022, para US$ 4,5 bilhões, em 2023. Hoje, entre 40% e 65% do diesel importado no Brasil vem da Rússia, segundo estimativas do setor.
A Petrobras afirma que a nova estratégia utilizada para a definição de preços permite o equilíbrio com os mercados nacional e internacional. “Essa prática é especialmente importante em momentos de alta volatilidade, como o que vivemos agora”, disse a empresa em resposta aos questionamentos da Gazeta do Povo.
Questionada sobre o fato de a estratégia ter pressionado importadores a buscar diesel russo, a Petrobras se limitou a dizer que não importa diesel do país. A empresa também destacou que as operações de importação são diversificadas, enfatizando os Estados Unidos, Índia e região do Golfo Pérsico como principais origens. A Petrobras ainda afirmou, por meio de sua assessoria de imprensa, que aproveita “oportunidades de mercado e sinergias com outras operações, que conferem competitividade à empresa frente ao diesel importado da Rússia por outros agentes”.
“A dependência é grande para manter os preços internos mais baixos, pois o diesel russo tem sido oferecido com descontos em relação aos concorrentes”, explica Luciana Rodrigues, especialista em relações governamentais da BMJ Consultores Associados.
Na avaliação do professor de Economia João Gabriel de Araujo, do Ibmec Brasília, o atual modelo de preços criou vulnerabilidades externas que, com as sanções dos EUA, podem se tornar um problema imediato. “Essa política só é sustentável se vier acompanhada de investimento em refino nacional, diversificação de fornecedores e prudência diplomática”, aponta Araujo.
Para ele, a melhor solução para o Brasil seria diminuir a dependência das importações. “Ou pelo menos começar a produzir uma quantidade significativa de diesel, que é fundamental para o transporte de mercadorias e insumos dentro do país”, diz o professor.
Sob risco real de sanções secundárias, Brasil pode sofrer efeito cascata
As sanções secundárias, que passam a valer nesta sexta-feira (8), ampliam o cerco a países e empresas que mantêm relações comerciais com o setor energético russo. O impacto pode ser significativo ao afetar não só diretamente as importadoras, mas gerando um efeito cascata.
“Pode haver bloqueio de acesso ao sistema financeiro internacional, restrições ao crédito, suspensão de contratos e aumento do risco jurídico para empresas brasileiras”, alerta o especialista em petróleo e gás Armando Cavanha, professor da PUC-Rio.
Cavanha pontua ainda para possíveis “barreiras não tarifárias disfarçadas”, como “regras técnicas, compliance, e licenças”. “Mas são hipóteses, que certamente deveriam ser estudadas e avaliadas por instituições privadas e públicas, e o governo federal.”
Luciana Rodrigues, da BMJ Consultoria, reforça as preocupações. “Sanções secundárias podem atingir importadoras brasileiras, bancos que financiam essas operações e até parceiros comerciais que operem em dólar, criando um efeito em cascata”.
A Índia já é alvo das penalidades impostas pelos Estados Unidos pela compra de diesel russo. Inicialmente, a taxação imposta foi de 25%. Em resposta à política de Trump, o Ministério das Relações Exteriores indiano emitiu um comunicado, na segunda-feira (4), e criticou os Estados Unidos e a União Europeia.
A Índia afirma que está sendo “injustamente” visada por eles por causa de suas compras de petróleo russo. “É revelador que as mesmas nações que criticam a Índia estejam elas mesmas se entregando ao comércio com a Rússia”, disse o comunicado.
Ainda na segunda-feira, Donald Trump falou sobre o caso da Índia em uma publicação na sua rede social. “Eles não se importam com quantas pessoas na Ucrânia estão sendo mortas pela máquina de guerra russa. Por isso, aumentarei substancialmente a tarifa paga pela Índia aos EUA”, escreveu o presidente dos EUA na Truth Social.
Já na quarta-feira (6), o governo dos Estados Unidos anunciou uma tarifa extra à Índia, chegando a 50%. A nova tarifa entrará em vigor em 27 de agosto, exceto para os bens que já estão em trânsito — para esses, o prazo se estende até 17 de setembro.
Petrobras está sob pressão
Embora a Petrobras não esteja diretamente envolvida nas importações de diesel russo, ela acaba afetada. Diferentemente das importadoras privadas, a estatal continua importando diesel dos Estados Unidos. O fim do PPI faz com que o governo segure artificialmente os preços, mas o mercado continua sendo influenciado pelos custos internacionais. Caso as sanções secundárias passem a vigorar, os preços devem subir.
O cenário, no entanto, é envolto de incertezas. “A dúvida é como a Petrobras irá reagir a esse novo custo. Pode haver pressão política para segurar os preços, o que comprometeria sua saúde financeira”, afirmou Cavanha.
No mesmo sentido, Araujo alerta que as sanções podem forçar a Petrobras a rever como calcula os preços dos combustíveis. “Com menos opções de fornecedores e preços internacionais mais instáveis, a Petrobras pode precisar ajustar sua política para tentar proteger o consumidor”, salientou.
“Proteger o consumidor” também pode ser interpretado nesse contexto como adotar uma prática contrária ao livre mercado com o objetivo político de evitar mais quedas de popularidade do governo Lula e crise com o setor dos caminhoneiros.
Além disso, há temor de desabastecimento, caso as importadoras precisem suspender rapidamente os contratos com fornecedores russos. A substituição por países como Estados Unidos, Índia ou Arábia Saudita pode levar tempo e elevar os custos logísticos.
“O risco [de desabastecimento] existe, especialmente se houver ruptura abrupta. Isso afetaria o transporte de cargas, pressionaria a inflação e criaria um efeito dominó em setores estratégicos”, afirmou Araujo.
Dilema geopolítico é envolto em questões ideológicas
A aproximação do Brasil com o grupo BRICS+, formado pela Rússia, Índia, China, África do Sul, Egito, Emirados Árabes Unidos, Etiópia, Irã, Indonésia e Arábia Saudita, também aumenta a tensão. Washington observa com preocupação o alinhamento político e comercial entre países que desafiam a hegemonia ocidental.
“Os EUA já enxergam o BRICS+ como uma ameaça ao dólar e ao seu domínio econômico. Isso coloca o Brasil em uma zona cinzenta de risco político e comercial”, diz Araujo.
Ainda assim, o especialista defende que o Brasil não precisa se submeter a uma lógica de guerra fria. “É possível manter relações comerciais com diversos países, desde que com cautela diplomática e estratégia energética de longo prazo”, afirma o professor do Ibmec Brasília.
Fonte: Gazeta