Nas 517 páginas de suas alegações finais no processo sobre a suposta tentativa de golpe em 2022, a Procuradoria-Geral da República (PGR) tentou rebater as principais linhas de defesa do ex-presidente Jair Bolsonaro, acusado de exercer papel central nas articulações que, segundo a denúncia, buscavam impedir a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Pouco mais de um quarto do documento – última manifestação da acusação na ação penal – dedica-se a demonstrar a suposta participação de Bolsonaro na criação de um ambiente institucional, social e militar que propiciasse sua continuidade no poder.
Teses já externadas por sua defesa e em diversas manifestações em entrevistas e pronunciamentos foram confrontadas pelo procurador-geral da República, Paulo Gonet. É o caso, por exemplo, da ideia de que os atos de 8 de janeiro nunca poderiam configurar uma tentativa de depor Lula; ou de que as dúvidas de Bolsonaro às urnas eletrônicas eram sinceras e amparadas pela liberdade de expressão.
As alegações finais da Procuradoria-Geral da República somam-se, agora, à operação da Polícia Federal, deflagrada nesta sexta (18), que abriu uma nova frente de investigação contra Bolsonaro, desta vez por alinhar-se à pressão que seu filho Eduardo Bolsonaro faz junto ao governo dos Estados Unidos por sanções ao Brasil, em retaliação ao processo do golpe.
Nesta ação penal, em fase final de tramitação, os argumentos da Procuradoria-Geral da República tendem a ser destacados pelos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento final do caso, previsto para ocorrer neste segundo semestre de 2025. Até o momento, as teses da acusação têm prevalecido entre os ministros da Primeira Turma que julgam a ação. De forma praticamente unânime, Alexandre de Moraes, Flávio Dino, Cármen Lúcia, Luiz Fux e Cristiano Zanin aceitaram a denúncia, em março, e rechaçaram as objeções processuais levantadas pelas defesas.
As alegações finais da Procuradoria-Geral da República, de qualquer modo, ainda serão rebatidas pelos advogados de Bolsonaro e de outros sete réus acusados junto com ele na ação. Em regra, os ministros têm o dever de examinar detidamente cada ponto para condenar ou absolver, de acordo com as provas do processo e com a aplicação isenta da lei.
Abaixo, uma síntese dos argumentos da PGR para rebater a defesa de Bolsonaro.
1) Ações isoladas e falta de ato assinado
Na resposta à acusação e em outras manifestações, a defesa de Bolsonaro alegou que as mensagens de celular, planos de ruptura e manifestações públicas reunidas na investigação seriam atos isolados e sem efetiva capacidade de deflagrar um golpe.
Bolsonaro, além disso, ressalta que nunca assinou qualquer ato para frustrar a sucessão presidencial. A chamada “minuta do golpe” – esboço de um decreto que, segundo as investigações, tinha por objetivo final rever o resultado da eleição –, apesar de encontrada nas investigações, nunca passou de um documento apócrifo.
A Procuradoria-Geral da República, no entanto, argumenta que a tentativa, em si, já configura crime, conforme a lei, e que, vistos em conjunto, os atos investigados levariam a uma ruptura – o que só não teria ocorrido por circunstâncias alheias à vontade dos acusados (a recusa do Exército e da Aeronáutica em apoiar uma intervenção no processo eleitoral).
“Os fatos de que a denúncia tratou nem sempre tiveram os mesmos atores. Mas todos eles convergiram, dentro do seu espaço de atuação possível, para o objetivo comum de assegurar a permanência do Presidente”, diz Gonet. “Para que a tentativa se consolide não é indispensável, por certo, que haja ordem assinada pelo Presidente da República para a adoção de medidas explicitamente estranhas à regularidade constitucional.”
2) Discursos não são ações violentas
A Procuradoria-Geral da República também confronta a ideia de que os discursos de Bolsonaro seriam políticos e não representavam ações violentas – um requisito necessário para a configuração do crime de golpe de Estado e de abolição do Estado Democrático de Direito.
Os dois delitos exigem a presença de violência ou grave ameaça, e para a Procuradoria-Geral da República, as declarações de Bolsonaro contra a condução do processo eleitoral pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), com constante questionamento sobre a conduta dos ministros e a integridade das urnas eletrônicas, buscavam insuflar a população para uma revolta contra o resultado, fator necessário dar sustentação civil a um golpe.
“Discursos contra a legitimidade dos meios eletrônicos de votação e de apuração eleitoral, assentados legalmente, assumem dimensão própria de contexto golpista”, diz a Procuradoria-Geral da República, acrescentando que os pronunciamentos de Bolsonaro tinham o propósito de animar apoiadores de medidas inconstitucionais, num ambiente de declínio de chances de êxito normal da sua candidatura.
Por isso, argumenta o órgão, os discursos do ex-presidente eram “artifício de deslegitimação do processo eleitoral, para gerar estado de coisas favorável a providências de desrespeito, pela força, do resultado apurado nas eleições de 2022”.
A Procuradoria-Geral da República conclui que os discursos, afinal, motivaram atos de rebelião ocorridos após a derrota de Bolsonaro, com destaque para paralisações de caminhoneiros nas estradas, manifestações em frente a quartéis do Exército para pedir intervenção militar, um atentado a bomba frustrado no aeroporto de Brasília e a tentativa de invasão da sede da Polícia Federal no dia da diplomação de Lula no TSE, em dezembro.
A invasão e depredação do Congresso, do STF e do Palácio do Planalto, em 8 de janeiro, foi, segundo a Procuradoria-Geral da República, o ato violento derradeiro.
Na visão do órgão, seria a última tentativa de, mediante um clima generalizado de comoção social e instabilidade institucional, forçar o Exército a realizar uma intervenção nos Poderes por meio de uma operação de Garantia da Lei e da Ordem – a medida, conhecida como GLO, é prevista na Constituição, mas usada na segurança pública em situações graves e em locais de conflito.
3) Falta de envolvimento direto no 8 de janeiro
Bolsonaro sempre ressaltou que estava nos Estados Unidos no 8 de janeiro de 2023 e que, além disso, não há nenhuma prova de que tenha determinado a invasão e depredação das sedes dos Poderes em Brasília.
Mas, além de argumentar que o grupo do ex-presidente “desejou, programou e provocou a eclosão popular”, uma vez que “a revolta serviria como fator de legitimação para que fossem decretadas as medidas de exceção”, a Procuradoria-Geral da República também aponta que Bolsonaro deu apoio moral e material para o acampamento do Quartel-General do Exército, em Brasília, de onde partiu o protesto.
A investigação reuniu provas de que o general Mário Rodrigues, ex-secretário-executivo da Secretaria-Geral da Presidência frequentava o local e mantinha contato com líderes do acampamento, que a ele recorria para tentar impedir que a Polícia Federal prendesse os manifestantes ou apreendesse caminhões. Mario Rodrigues, por sua vez, direcionava esses pedidos ao ex-ajudante de ordens de Bolsonaro Mauro Cid, que, nas respostas, dizia que trataria do assunto com o ex-presidente.
A Procuradoria-Geral da República também argumenta que, Bolsonaro, como chefe de Estado, tinha o dever de desmobilizar o acampamento, por estar ciente de que os manifestantes queriam impedir a posse de Lula, frustrando o resultado da eleição. Em depoimento, Cid contou que, nessa época, Bolsonaro repetia internamente que “não fui eu que chamei eles aqui, não sou eu que vou mandar eles embora”.
Em depoimento, Bolsonaro chamou os manifestantes de “malucos”. Em 9 de novembro, em pronunciamento em frente ao Palácio da Alvorada dirigido a eles, o ex-presidente buscou manter o ânimo da multidão. “Quem decide o meu futuro, pra onde eu vou são vocês! Quem decide para onde vão as Forças Armadas são vocês!”, bradou.
Para a Procuradoria-Geral da República, o ex-presidente deveria ter mandado os manifestantes para casa para viabilizar uma sucessão presidencial pacífica.
“Como Chefe de Estado, Bolsonaro possuía um papel fundamental na preservação da ordem e na contenção de discursos e ações extremistas, notadamente quando estas advinham diretamente de seus apoiadores. A sua resposta às manifestações, contudo, foi marcada por um recolhimento eloquente”, escreveu Gonet.
“Ao invés de agir para conter a ofensiva aos valores democráticos, ele incentivou uma postura que estimulava a ruptura da normalidade institucional. Essa atitude, aliada à sua omissão perante o risco de descontrole, configura uma omissão qualificada. Sua negligência, fundamentada na sua posição de autoridade, não apenas deixou de prevenir a ampliação da violência, mas contribuiu ativamente para a crise de institucionalidade, permitindo que acontecimentos que ameaçavam o Estado de Direito se desenrolassem”, afirmou ainda o procurador-geral nas alegações.
4) Autogolpe e nomeação de novos comandantes das Forças Armadas
Uma das linhas da defesa é de que o crime de golpe de Estado é definido pela tentativa de depor um governo “legitimamente constituído” e que, como os atos narrados se deram durante seu mandato e não no de Lula, Bolsonaro não poderia dar um “autogolpe”.
A PGR argumenta que o texto da lei deve ser interpretado de modo a abarcar também atos em que um governante tenta se manter no poder contrariando o resultado das eleições.
“O crime de golpe de Estado, previsto no art. 359-M do Código Penal brasileiro, não visa a proteger a figura pessoal do governante, mas, sim, a forma legítima de exercício do poder político. O bem jurídico tutelado é a ordem democrática como expressão institucional da soberania popular, e não a integridade física ou moral do Chefe de Governo. Isso significa que a norma penal incide sempre que se tentar romper, de forma violenta ou com ameaça de força, o ordenamento constitucional, ainda que isso se dê por ação daquele que legitimamente ascendeu ao poder”, diz.
“O golpe de Estado ocorre pela substituição da fonte do poder própria— a vontade soberana do povo, expressa segundo as regras constitucionais — pela força, pela coerção ou por expedientes autoritários que visam a manter ou a concentrar o poder indevidamente. Decerto que isso é logicamente possível de se suceder no curso do mandato do governante que decide romper com a ordem democrática”, argumenta ainda a Procuradoria-Geral da República.
Bolsonaro também alega em sua defesa que orientou seus ministros a darem curso normal à transição para a equipe de Lula e que mandou nomear os novos comandantes das Forças Armadas escolhidos pelo petista. Seria uma prova de sua disposição em entregar o poder ao novo presidente.
A Procuradoria-Geral da República diz, no entanto, que até o final de dezembro, militares mais radicais consultavam Mauro Cid sobre a disposição de Bolsonaro em assinar o decreto que levaria à revisão da eleição. Além disso, cita relatos do ex-ajudante de ordens de que havia pressão para que Bolsonaro substituísse os comandantes do Exército, Freire Gomes, e da Aeronáutica, Baptista Júnior, que rechaçavam o decreto.
No próprio dia 8 de janeiro, em mensagem para sua mulher, Cid afirmou que o Exército ainda poderia aderir ao levante. “Se o EB sair dos quartéis… é para aderir”.
5) Não se discutia “golpe” com comandantes militares
Em depoimento, Bolsonaro enfatizou que, nas reuniões que teve com os comandantes das Forças Armadas, nunca se discutiu qualquer golpe. “Da minha parte, por parte de comandantes militares, outros que estavam do meu lado, nunca se falou em golpe. Golpe é uma coisa abominável. O golpe até seria fácil começar. O day after [dia seguinte] que é simplesmente imprevisível e danoso para todo mundo. O Brasil não poderia passar por uma experiência dessa. E não foi sequer cogitada esta hipótese de golpe no meu governo”, disse o ex-presidente no STF.
Em seus depoimentos na Corte, os ex-comandantes do Exército, Freire Gomes, e da Aeronáutica, Baptista Júnior, também não usaram o termo “golpe” para se referir às medidas que eram discutidas com Bolsonaro nas reuniões.
Nesses encontros, relataram, o ex-presidente cogitava as condições para decretar um estado de defesa, de sítio ou uma operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), medidas previstas na Constituição para casos de “iminente instabilidade institucional”.
A Procuradoria-Geral da República argumenta, no entanto, que as medidas nunca poderiam ser usadas para frustrar o resultado de uma eleição e impedir a sucessão presidencial. Por isso, não importa que, nas reuniões, Bolsonaro não tenha falado em “golpe”.
“A nomenclatura atribuída pelo próprio réu ao seu intento ilícito é de somenos importância. O golpe de Estado se configura pela derrubada ilegal e repentina de um governo constitucionalmente legítimo, realizada por um grupo de dentro ou fora do governo, frequentemente por meios violentos, como um levante militar ou a aprovação de medidas que invalidam a Constituição por meio de suporte armado. Caracteriza-se por uma ruptura institucional que submete o controle do Estado a pessoas não designadas legalmente”, diz o órgão.
“Instrumentos de exceção, criados para proteger a ordem democrática em situações extremas, são frequentemente manipulados e aplicados de forma diversa de sua finalidade original, com o objetivo de desencadear essa ruptura. Assim, em vez de simplesmente “golpe”, termos como “intervenção”, “medida necessária” ou “restabelecimento da ordem” são utilizados para mascarar os verdadeiros interesses de desconstituição institucional”, conclui a Procuradoria-Geral da República.
Fonte: Gazeta