A decisão desta sexta-feira (18) do ministro Alexandre de Moraes que impôs tornozeleira eletrônica, recolhimento domiciliar noturno e outras medidas cautelares contra o ex-presidente Jair Bolsonaro está sendo criticada por juristas, que apontam nova violação de princípios do Estado de Direito.
“Do ponto de vista de um Direito Penal que respeita as garantias individuais, é preciso mais do que interpretações amplas ou conjecturas. O uso do Direito Penal deve ser contido, para evitar que ações ou discursos – ainda que criticáveis ou politicamente inoportunos – acabem sendo tratados como crimes sem que se prove com rigor essa ligação”, afirma Alessandro Chiarottino, doutor em Direito Constitucional pela USP.
As restrições foram decretadas no âmbito de uma petição paralela a um inquérito que investiga Eduardo Bolsonaro, e foram justificadas com base na acusação de que Jair Bolsonaro teria atuado, junto ao filho, para pressionar o Supremo Tribunal Federal (STF) articulando sanções dos Estados Unidos contra autoridades brasileiras.
Para Chiarottino, a descrição dos crimes não corresponde de forma clara à conduta de Bolsonaro. “A decisão menciona três crimes supostamente praticados por Jair Bolsonaro: coação no curso do processo, obstrução de investigação criminal e atentado à soberania nacional. No papel, os fatos narrados até podem ser enquadrados nesses tipos penais. Porém, quando olhamos com mais cuidado, vemos que muito do que se aponta – como postagens em redes sociais, declarações públicas e transferências bancárias entre pai e filho – está longe de configurar, com clareza, um crime como o previsto na lei”, comenta.
A principal base argumentativa da decisão é a tese de que Bolsonaro estaria tentando submeter o STF ao crivo de outro Estado por meio da articulação com autoridades americanas.
Uma das alegações de Moraes é a de que as declarações públicas de Jair e Eduardo Bolsonaro teriam instigado o governo dos Estados Unidos a aplicar sanções contra o Brasil, o que violaria a soberania nacional. Mas, segundo os juristas, essa construção não se sustenta.
A consultora jurídica Katia Magalhães Magalhães afirma que a decisão ignora exigências mínimas de adequação ao tipo descrito pelo artigo 359-I do Código Penal, de atentado à soberania.
“Qualquer acusação séria com base nesse tipo penal pressuporia a exibição de evidências robustas de que Bolsonaro estivesse agindo com a finalidade de ensejar atos bélicos, ou seja, confrontos armados, invasão de território e demais conflitos violentos. Para tanto, Bolsonaro teria de estar comprovadamente envolvido em operações militares e/ou paramilitares, inclusive com agentes estrangeiros. No entanto, tudo o que a PGR apresentou, e o ministro endossou foram comentários manifestados tanto por Eduardo quanto por Jair Bolsonaro, ambos no legítimo exercício de sua liberdade de expressão, amparada pela Constituição”, diz.
Rodrigo Chemim, professor de Processo Penal da Universidade Positivo e doutor em Direito do Estado, também ressalta que o tipo penal de atentado à soberania nacional exige a existência de negociação com governo estrangeiro para incentivar atos de guerra contra o Brasil. “A expressão ‘atos hostis’ empregada na decisão é genérica, sem equivalência com os requisitos típicos de ‘ato de guerra’. Medidas diplomáticas, como sanções econômicas, não configuram por si só esse tipo penal, salvo em contexto bélico, que está ausente”, explica.
Para Chiarottino, “transformar postagens e articulações políticas – ainda que controversas ou de gosto duvidoso – em atos criminosos contra o Estado é algo que merece cuidado”. “A decisão parece partir de uma leitura ampla demais do artigo 359-I, que exige uma atuação mais concreta e intencional para provocar atos hostis contra o país. Fica a sensação de que se está criminalizando a crítica e a retórica política, o que pode ser perigoso.”
No que diz respeito ao crime de obstrução de investigação, os juristas afirmam que as provas também inexistem. “A aplicação desse tipo penal exige prova de embaraço efetivo de investigações, como seria o caso, por exemplo, de investigados que promovessem a destruição/alteração de documentos, ou coagissem outras partes ou testemunhas. Contudo, a PGR não exibiu qualquer prova nesse sentido”, diz Katia.
Chemim ressalta que esse tipo penal exige que a conduta vise obstruir a investigação, e não o processo penal em curso. “A decisão não demonstra vínculo direto com qualquer investigação ainda em fase inquisitorial, tampouco com o inquérito das fake news, mencionado de forma acessória. Assim, a subsunção típica [tentativa de encaixar os fatos num crime previsto em lei] parece forçada e contraria o princípio da taxatividade penal [que diz que só é crime o que está claramente escrito na lei]. Uma interpretação extensiva in malam partem [isto é, ampliar o sentido da lei para prejudicar o acusado] é proibida.”
Juristas divergem em alguns pontos relacionados às medidas contra Bolsonaro
Na decisão em que impôs medidas restritivas contra Jair Bolsonaro, o ministro Alexandre de Moraes também invoca os artigos 344 e 359-L do Código Penal, que tratam, respectivamente, da coação no curso do processo e da tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito. A interpretação desses tipos penais divide opiniões entre os juristas consultados.
Rodrigo Chemim vê possibilidade de configuração de ambos os crimes neste caso, desde que se comprovem os elementos relacionados a eles. “A conduta de Jair Bolsonaro pode configurar coação no curso do processo, já que houve ameaça de interferência, por meio de declarações públicas e articulações internacionais, no julgamento da Ação Penal 2668, em que é réu; e o crime de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, a depender do que se evidencie do dolo”, afirma.
Katia Magalhães discorda dessa possibilidade. Segundo ela, o tipo penal da coação exige a presença de violência ou ameaça de natureza concreta, o que não aparece nos fatos apontados na decisão. “No tipo penal de coação no curso do processo, a lei pune o uso de violência ou grave ameaça contra autoridade. Como o emprego de violência é elemento fundamental do tipo, a PGR teria de ter provado eventuais atentados, por parte de Bolsonaro, à integridade física de ministros do STF, o que jamais ocorreu. Na seara da grave ameaça, a lei pune ameaças concretas de males injustos, tais como armadilhas, emboscadas e outros ardis concretos aos quais Bolsonaro pudesse ter exposto togados”, explica.
Sobre as medidas cautelares, os juristas também têm pontos de vista diferentes. Chiarottino diz que “medidas tão invasivas como essas só deveriam ser usadas quando há risco real e bem fundamentado – como ameaça a testemunhas, destruição de provas ou tentativa de fuga.”
Ele observa que as manifestações públicas e a transferência bancária de pai para filho são regulares e não provam crime. “O processo penal não pode se tornar um instrumento de punição antecipada, especialmente quando se trata de restrições a direitos como liberdade e intimidade. Uma Justiça que preza pelo devido processo legal deve agir com equilíbrio e proporcionalidade”, diz.
Na perspectiva de Chemim, a validade das medidas cautelares depende da comprovação de que as ações de Bolsonaro comprometeriam o julgamento da ação penal em curso.
“A decisão sustenta que Jair Bolsonaro, ao induzir ou apoiar articulações estrangeiras com o objetivo de constranger o Supremo Tribunal Federal, estaria tentando frustrar o julgamento da Ação Penal 2668. Se comprovado que tais condutas configuram coação no curso do processo, elas podem, sim, ser compreendidas como obstáculo direto à aplicação da lei penal. Isso porque a coação busca desestabilizar o processo, intimidar seus agentes e desviar o curso da jurisdição penal, o que justifica, em tese, o uso de medidas cautelares para preservar a eficácia do julgamento”, comenta.
Katia Magalhães diz que nem sequer há indícios de um ato que justifique qualquer medida restritiva. “Como a PGR não comprovou qualquer ato de violência efetiva por parte de Bolsonaro, ou da iminência de comprometimento às evidências do processo, as cautelares decretadas por Moraes são abusivas. Tornam a criminalizar meras opiniões, e, nesse caso específico, o uso, por Bolsonaro, de seus recursos financeiros, o que beira a insanidade!”, critica.
Ela recorda ainda que Bolsonaro perdeu o foro privilegiado e, antes de qualquer discussão sobre a decisão desta sexta, nem sequer poderia ser alvo de decisões do STF. “Muito menos em inquérito movido contra um terceiro (seu filho), e, menos ainda, em inquérito aberto de ofício, em nova violação ao princípio da inércia do Judiciário”, complementa.
Fonte: Gazeta