As alegações finais da Procuradoria-Geral da República (PGR) referente à Ação Penal 2.668 do suposto golpe de Estado – que pede a condenação de oito réus que integram o chamado Núcleo 1 da suposta trama, incluindo o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) – apresentam ao menos cinco inconsistências, segundo especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo.
De acordo com os advogados, são pontos críticos, controversos na manifestação da PGR e cruciais, pois se apresentam como a espinha dorsal da acusação contra os réus. Os pontos analisados nesta reportagem incluem a afirmação da Procuradoria-Geral da República que os atos de 8 janeiro de 2023 são resultado de uma série eventos passados com o objetivo de efetivar um golpe de Estado; o conceito de autogolpe; as alegadas omissões de Bolsonaro; um hipotético comando no 8/1; e ainda a colaboração premiada de Mauro Cid.
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1. Procuradoria sustenta tese de “plano maior” e diz que 8/1 ressignificou atos do passado
Um dos argumentos centrais da PGR é de que atos e eventos que tiveram a participação dos réus – que poderiam parecer isolados ou apenas “imorais” ao longo do tempo – são parte de um plano contínuo e deliberado para um golpe de Estado. Ou seja, o procurador-geral usou as manifestações de 8 de janeiro de 2023 para reinterpretar ações realizadas pelos réus desde 2021.
Alguns dos exemplos citados foram uma live do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) ainda do ano de 2021 em que ele fez questionamentos sobre o sistema eleitoral; a reunião com embaixadores em que tratou sobre o mesmo tema em julho de 2022; a criação do que a PGR denonima de “Abin paralela”; os atos de 7 de Setembro de 2021 e 2022; e a suposta minuta do golpe, entre outros.
A PGR argumenta que o 8 de janeiro de 2023 “auxiliou a ressignificar toda uma série de acontecimentos pretéritos [anteriores], que antes pareciam desconectados entre si”.
Segundo o advogado e comentarista político Luiz Augusto Módolo, a acusação depende de uma visão retrospectiva para conectar os pontos e atribuir um dolo [intenção] golpista a ações que ocorreram muito antes.
“Trata-se de uma reinterpretação forçada dos fatos, onde se atribui um propósito criminoso a atos que, em seu tempo, poderiam ser enquadrados como mera retórica política ou crítica às instituições. E mais, nunca vi uma tentativa de golpe de Estado se estender por dois anos”, avalia Módolo.
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2. A definição de “autogolpe” e a irrelevância do mandato vigente
A PGR rebate a alegação de defesas na ação penal de que não faria sentido tentar um golpe contra um governo que já estava no poder, no caso, tentar um golpe quando Bolsonaro ainda era presidente.
Para isso, a acusação utiliza o conceito de “autogolpe”. A PGR define o autogolpe como a ação de um governante que “passa a utilizar a violência ou a grave ameaça para modificar a base de legitimidade de seu governo, […] ou tentando se perpetuar no cargo por meios ilegítimos”.
Segundo essa tese, o crime não é contra a figura do governante, mas contra a “ordem democrática como expressão institucional da soberania popular”.
“Este ponto é juridicamente complexo. Os tipos penais de Golpe de Estado e Abolição Violenta do Estado Democrático de Direito são recentes no ordenamento jurídico brasileiro e sua aplicação a um cenário de “autogolpe” é uma interpretação extensiva da lei penal, o que é vedado no direito brasileiro”, destaca o especialista em Direito Penal Márcio Nunes.
O constitucionalista Alessandro Chioratino levantou outro questionamento jurídico sobre o tema. Para ele, a imputação simultânea dos crimes de tentativa de golpe de Estado e de tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito pode configurar um caso clássico de “non bis in idem” [“não duas vezes pelo mesmo”, em uma tradução literal]. Ou seja, o princípio prevê que uma pessoa não pode ser punida duas vezes pelos mesmos fatos.
“Esses dois crimes podem descrever condutas idênticas. Numa democracia, obviamente, toda tentativa de golpe de Estado também é uma tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito”, explicou Chioratino.
“Ao mesmo tempo, é preciso perguntar: como alguém tentaria abolir o Estado Democrático de Direito, em uma democracia, sem realizar um golpe de Estado? São situações que, do ponto de vista lógico e jurídico, estão intrinsecamente ligadas”.
Para o jurista, ainda que o legislador tenha previsto os dois tipos penais separadamente, o julgamento dessas condutas deve levar em conta o princípio da absorção, que é aplicado quando duas infrações descrevem, na prática, um único comportamento.
“Mesmo que se entenda que são condutas diversas do ponto de vista formal, uma deveria absorver a outra, justamente para evitar excessos punitivos e preservar a coerência do sistema penal”, destacou.
O advogado lembra que o princípio do “non bis in idem” é uma garantia fundamental do Estado de Direito e está previsto não apenas na Constituição Federal, mas também em tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário.
“É legítimo investigar e punir condutas gravíssimas, como as que estão sendo apuradas, mas isso deve ser feito com rigor técnico e respeito aos limites do Direito. Inflar artificialmente a gravidade dos crimes com múltiplas tipificações que descrevem o mesmo fato pode comprometer a credibilidade das instituições e abrir brechas para contestações futuras”.
Segundo ele, caberá ao STF, ao julgar os réus, aplicar uma interpretação que evite abusos e respeite os princípios fundamentais do Direito Penal.
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3. A responsabilidade de todos pela omissão e pelo “dever de garante”
Na ação, a PGR atribui responsabilidade penal não apenas por ações diretas, mas também por omissões, especialmente de figuras em posições de poder, como o então presidente Jair Bolsonaro.
A acusação afirma que Bolsonaro, como chefe de Estado, tinha o “dever de garante”, ou seja, a obrigação legal de proteger o bem jurídico – o Estado de Direito – e que sua omissão em desmobilizar os acampamentos em frente aos quartéis e conter a retórica supostamente golpista foi “qualificada” e “estimulou a ruptura democrática”.
As defesas de Bolsonaro e outros réus afirmam que a omissão não é suficiente para configurar crimes que exigiriam uma ação comissiva (um ato direto) com violência ou grave ameaça. “A aplicação do “dever de garante” a crimes contra o Estado Democrático é um ponto de intenso debate jurídico e provavelmente será um dos focos centrais das defesas”, salienta Márcio Nunes.
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4. A conexão subjetiva entre os líderes e os manifestantes
Para vincular os réus aos atos de 8 de janeiro, a PGR se esforça para provar que não houve um “mero paralelismo de circunstâncias”, mas sim “contribuições e interlocuções diretas entre a organização criminosa e os manifestantes”.
A acusação utiliza trocas de mensagens entre o ex-ajudante de ordens Mauro Cid e líderes de manifestações, e a presença do general da reserva Mário Fernandes, ex-número dois da Secretaria-Geral da Presidência no governo Bolsonaro, nos acampamentos como prova de que havia um comando e uma orientação direta.
Já a fala de Mauro Cid à esposa dele – “Se o EB sair dos quartéis… é para aderir” – é usada como evidência da expectativa de que os atos violentos levariam à intervenção militar, onde a sigla EB se refere ao Exército Brasileiro.
Para especialistas, as comunicações em si não provam um comando direto para atos de vandalismo e podem apenas indicar um apoio hipotético e genérico às manifestações. Analistas acreditam que os advogados deverão argumentar que a responsabilidade pelos atos de destruição precisa ser aplicada de forma proporcional e individual a quem os praticou, e não pode ser automaticamente estendida aos réus de forma indiscriminada.
5. A colaboração premiada de Mauro Cid: útil, mas incompleta
A PGR dedica uma longa seção para analisar a colaboração de Mauro Cid, reconhecendo sua utilidade, mas apontando falhas graves que, segundo a Procuradoria, justificam uma redução de pena em um terço. Enquanto os demais réus podem ser condenados a até 40 anos de reclusão – o que pode levar a 43 anos para Jair Bolsonaro – a pena de Cid pode chegar a 25 anos de reclusão. Vale ressaltar que se trata de uma estimativa e que o documento não trata sobre o período das penas.
A PGR afirma que, embora a colaboração tenha sido útil, o comportamento de Cid foi “contraditório, marcado por omissões e resistência ao cumprimento integral das obrigações pactuadas”. A acusação menciona especificamente os áudios vazados em que Cid critica a investigação, diz que teria sido coagido e a suspeita de que ele usou um perfil falso para se comunicar com a defesa de outro réu.
“A defesa dos réus pode usar essas falhas para tentar anular a validade da colaboração e das provas dela decorrentes, alegando que o colaborador agiu de má-fé, assim como alguns já vem fazendo”, destaca Módolo.
Segundo o advogado Gauthama de Paula, especialista em Direito Penal, a PGR sugeriu a concessão de uma redução mínima de um terço da pena ao colaborador, alegando que ele não teria agido com plena boa-fé e lealdade processual — critérios que, segundo o especialista, são subjetivos e controversos.
Apesar disso, a própria PGR reconhece, nas alegações, a importância estratégica de Cid para a suposta organização criminosa. De acordo com o documento, o colaborador teve papel central na engrenagem do grupo e forneceu informações que revelaram a estrutura interna e a divisão de tarefas dos envolvidos.
Para Gauthama de Paula, a colaboração atingiu os objetivos previstos na Lei nº 12.850/2013, que regula a delação premiada no Brasil. Assim, a escolha da PGR por recomendar uma redução mínima de pena – sem considerar alternativas como a substituição da pena privativa de liberdade por penas alternativas ou mesmo o perdão judicial – pode gerar efeitos colaterais graves.
“Caso o STF decida condenar todos os réus e não conceda benefícios mais amplos ao único colaborador do processo, haverá um desestímulo concreto à colaboração premiada em casos futuros”, avalia o jurista.
Para o constitucionalista André Marsiglia, Gonet pune Cid pelas diversas versões e hesitações em mais de uma dezena de depoimentos com informações controversas. “Não há como alguém dar uma dezena de versões, como fez Cid, e falar a verdade. Não há como alguém mentir e ser beneficiado”, afirma.
Para Marsiglia, Cid chegou a acreditar que tentando agradar a PGR, apoiando a versão a qualquer preço seria beneficiado, mas a medida não deu certo porque não teve o pedido de sua absolvição consolidada.
Vale destacar que as alegações finais seguem agora para a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), sob a relatoria de Alexandre de Moraes. Caberá à turma decidir se os réus serão condenados, absolvidos, o tamanho da pena e como cada um deverá cumpri-la, se em regime aberto ou fechado.
Quem são os oito que a PGR pediu condenação
No documento, a PGR pede a condenação de oito pessoas que integrariam o chamado núcleo central, ou seja, o Núcleo 1 do suposto golpe. São eles:
- Alexandre Ramagem: ex-diretor da Agência Brasileira de Inteligência (Abin). É réu pelos crimes de organização criminosa armada; tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito e golpe de Estado.
- Almir Garnier Santos: ex-comandante da Marinha. Responde pelos crimes de organização criminosa armada; tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito; golpe de Estado; dano qualificado pela violência e grave ameaça contra o patrimônio da União, e com considerável prejuízo para a vítima e deterioração de patrimônio tombado.
- Anderson Torres: ministro da Justiça no governo Bolsonaro e ex-secretário de Segurança do DF. É réu pelos crimes de organização criminosa armada; tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito; golpe de Estado, dano qualificado pela violência e grave ameaça contra o patrimônio da União e com considerável prejuízo para a vítima; deterioração de patrimônio tombado.
- Augusto Heleno: ex-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI). Responde pelos crimes de organização criminosa armada; tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito; golpe de Estado; dano qualificado pela violência e grave ameaça contra o patrimônio da União e com considerável prejuízo para a vítima e deterioração de patrimônio tombado.
- Jair Bolsonaro: ex-presidente da República. É réu pelos crimes organização criminosa armada; tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito; golpe de Estado; dano qualificado pela violência e grave ameaça contra o patrimônio da União e com considerável prejuízo para a vítima e deterioração de patrimônio tombado.
- Mauro Cid: ex-ajudante de ordens de Bolsonaro e delator. Responde pelos crimes de organização criminosa armada; tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito; golpe de Estado; dano qualificado pela violência e grave ameaça contra o patrimônio da União e com considerável prejuízo para a vítima; deterioração de patrimônio tombado. A PGR pede que a pena seja calculada com a incidência dos fatores favoráveis do regime de colaboração premiada com redução de um terço.
- Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira: general da reserva do Exército. É réu pelos crimes de organização criminosa armada; tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito; golpe de Estado; dano qualificado pela violência e grave ameaça contra o patrimônio da União e com considerável prejuízo para a vítima e deterioração de patrimônio tombado.
- Walter Souza Braga Netto: general e ex-candidato a vice na chapa de Bolsonaro em 2022. Responde pelos crimes de organização criminosa armada; tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito; golpe de Estado; dano qualificado pela violência e grave ameaça contra o patrimônio da União e com considerável prejuízo para a vítima; deterioração de patrimônio tombado.
Com o recebimento das alegações finais, o STF abre prazo de 15 dias para a defesa do delator Mauro Cid se manifestar e depois igual período, de 15 dias, para a defesa dos demais réus. A expectativa é de que o julgamento ocorra até o mês de outubro de 2025.
Fonte: Gazeta