A decisão do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) de recorrer ao Supremo Tribunal Federal (STF) para tentar validar o decreto presidencial sobre o aumento do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) reforça a dependência que o Executivo tem do Judiciário para governar. A ação fez a relação com o Congresso se deteriorar, com a oposição declarando “guerra” ao governo e o presidente da Câmara, Hugo Motta, evitando responder a tentativas de contato de líderes governistas.
A Advocacia Geral da União (AGU) anunciou nesta terça-feira (1) a intenção de recorrer ao STF para manter a alta no imposto, que havia sido derrubada pelo Congresso na semana passada.
O cientista político Paulo Kramer, da Kramer Consultoria, enxerga na manobra da AGU mais uma evidência da dependência crescente do governo em relação ao Judiciário. “Na medida em que a popularidade do governo se desidrata, sua dependência em relação ao STF só aumenta”, afirma o analista. Kramer também avalia que o STF deve ser cauteloso ao abordar essa questão.
A oposição classificou a ação como afronta inaceitável e trabalha para um isolamento ainda maior dos governistas no Congresso. “Trata-se de mais uma tentativa autoritária do governo Lula de judicializar um tema eminentemente político, tentando impor pela força do Judiciário aquilo que perdeu no voto, de forma ampla e transparente, dentro da Casa do Povo. Ao fazer isso, o governo declara guerra ao Congresso Nacional”, disse o deputado Luciano Zucco (PL-RS), líder da oposição na Câmara.
Partidos do Centrão também demonstraram contrariedade. O senador Oriovisto Guimarães (PSDB-PR) foi um dos que criticou a decisão do governo de ir ao STF contra a derrubada do aumento do IOF. Para o senador, o que o governo precisa é cortar gastos, porque a situação das contas públicas é dramática.
Mas o episódio marcou também o primeiro ponto de inflexão entre o presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), e o governo Lula. Desde a derrubada do decreto, na semana passada, o deputado ainda não atendeu aos telefonemas de Gleisi Hoffmann, ministra das Relações Institucionais, nem de Fernando Haddad, ministro da Fazenda.
“Eu fiz uma ligação e estou aguardando o retorno. [Ele] tem que ficar à vontade também. O presidente Hugo Motta frequentou o Ministério da Fazenda como poucos parlamentares”, disse Haddad nesta terça-feira (1).
O presidente da Câmara foi avisado ainda na segunda-feira (30), pelo líder do governo, deputado José Guimarães (PT-CE), de que o governo iria recorrer ao STF para tentar reverter a derrota sobre o decreto do IOF. Motta chegou a agradecer ao gesto do petista de avisá-lo e não fez nenhuma outra sinalização durante o telefonema.
No governo, a expectativa agora é que, mesmo com o recurso ao STF, Motta faça alguma sinalização para tentar retomar o diálogo político com o Executivo nos próximos dias. Além da liberação de emendas de Orçamento para agradar os parlamentares, o Planalto espera que interlocutores de Lula possam reabrir as negociações com Motta durante o “Gilmarpalooza”, um fórum jurídico organizado pelo ministro Gilmar Mendes, do STF, em Portugal que acontece nesta semana com a presença do presidente da Câmara.
O julgamento da ação movida pela AGU caberá ao ministro Alexandre de Moraes, do STF, e terá impacto além da questão tributária. Ele mostrará se o Judiciário continua disposto a resgatar o governo Lula frente a uma onda descendente de popularidade e capacidade de articulação política.
Se o julgamento favorecer o governo, a avaliação é que o STF deve seguir sustentando as decisões mais impopulares do Executivo. O cientista político Luiz Jardim afirma que o STF, há muito tempo, não se importa com a percepção da população. “Uma hora ele se considera editor nacional, outra de que é a luz para a sociedade e em outra nos considera o populacho, como pequenos tiranos”, avalia Jardim.
Para Luan Sperandio, analista político e diretor de operações do think tank Ranking dos Políticos, no entanto, a estratégia pode se voltar contra o próprio governo. Ele lembra que “até o ministro do STF André Mendonça declarou publicamente que a Corte tem invadido a competência entre outros poderes”.
Sperandio alerta que a sequência de intervenções, agora ampliada com a judicialização do IOF, tende a gerar reações duras no Legislativo. Ele afirma que o próximo alvo dos parlamentares pode ser a Medida Provisória do Ministério da Fazenda que traz medidas para compensar o recuo da elevação das alíquotas do IOF.
“A MP 1303 possui potencial arrecadatório bem maior do que o do decreto do IOF, mas até o momento não possui relator e o Legislativo pode forçar um cenário ameaçando deixar caducar”, observa. O analista lembra ainda que apenas 15% das Medidas Provisórias nesta legislatura foram convertidas em lei.
Juristas apontam que não há inconstitucionalidade em decisão do Congresso
A Ação Direta de Constitucionalidade (ADC) apresentada pela Advocacia-Geral da União ao STF quer garantir a validade de decretos presidenciais que alteraram as alíquotas do IOF. A tentativa de validar o decreto de Lula foi destacada pelo advogado-geral da União, Jorge Messias, em coletiva de imprensa sobre o assunto.
De acordo com Messias, a escolha não tem intenção de atacar o Congresso. “A opção reflete a verdadeira intenção de preservar a atribuição do Executivo”, disse o advogado-geral da União. A tese da AGU é que o Executivo tem a prerrogativa de alterar a alíquota do IOF por se tratar de um imposto regulatório. Para a AGU, o ato do Congresso Nacional que suspendeu o decreto que aumentava a alíquota violou os princípios da separação dos poderes e da legalidade tributária.
Na ação movida junto ao STF, o governo aponta que a medida do Legislativo seria inconstitucional, sob o argumento de que o presidente da República possui competência constitucional direta para alterar as alíquotas do IOF.
Analistas ouvidos pela Gazeta do Povo, no entanto, discordam do argumento apresentado. Para o advogado Georges Humbert, pós-doutor em direito e especialista em direito constitucional, a sustação de um decreto é um mecanismo de controle do Poder Legislativo sobre o Poder Executivo que faz parte do sistema de freios e contrapesos do país.
“Tendo em vista que cobertura de rombo fiscal e mero aumento de arrecadação durante o ano fiscal e sem previsão na lei orçamentária não é um motivo legalmente admitido para o Executivo aumentar alíquotas do IOF, o Congresso exerceu sua competência dentro dos limites e atribuições constitucionais”, explicou Humbert.
Pela regra geral, a Constituição confere ao Congresso Nacional a prerrogativa de sustar atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa.
O advogado e professor livre-docente da USP, Cristiano Carvalho afirma que no direito tributário, o poder regulamentar permite ao Executivo detalhar a aplicação de uma lei já aprovada pelo Legislativo. Ele cita como exemplo, o que ocorre com o regulamento do Imposto de Renda, que disciplina a operacionalização da cobrança sem poder inovar ou criar novas exigências tributárias.
No entanto, de acordo com Carvalho, a prerrogativa presidencial para alterar o IOF possui caráter excepcional e condicionado. “Mas só permite se for para fins regulatórios, ou seja, para intervir no setor de mercado específico que o IOF incide. Por exemplo, se houvesse ocorrido uma evasão abrupta e massiva de divisas”, explica o advogado.
Carvalho afirma que não houve fins regulatórios no decreto do governo. “O próprio Haddad confessou publicamente, na imprensa e perante a Câmara, que o aumento era para evitar o shutdown e tentar garantir superávit. Ou seja, para cobrir rombo fiscal do governo”, lembrou o advogado.
Assim, na avaliação de Carvalho, o decreto legislativo do Congresso sustando o IOF, serve para garantir prerrogativa do próprio Congresso. “Criar ou aumentar imposto arrecadatório é prerrogativa exclusiva do Congresso, sempre por lei, e respeitando a anterioridade. Nunca é prerrogativa do Executivo”, explicou o advogado.
A advogada especialista em direito constitucional, Vera Chemim afirma ainda que o Poder Legislativo não usurpou a competência constitucional do Poder Executivo, ou seja, não afrontou o Princípio da Separação dos Poderes, como alegou a AGU na ação. “No tocante aos aspectos formais não há o que se questionar a respeito da constitucionalidade do Decreto Legislativo”, afirma.
Fonte: Gazeta