A anulação da delação premiada de Mauro Cid, ex-ajudente de ordens no governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), deve ser o foco dos esforços das defesas dos réus do processo que investiga uma suposta tentativa de golpe de Estado.
A defesa de Walter Braga Netto é uma das que estuda formalizar novo pedido após uma acareação entre o general e Cid no STF nesta semana. Os advogados de Braga Netto disseram que o tenente-coronel se contradisse em depoimentos e que ele teria faltado com a verdade.
Para pedir a anulação da delação, a defesa deve apresentar pedido na própria ação penal em que a colaboração foi usada, dirigida ao ministro relator do caso, neste caso, a Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF). Nesse pedido, é necessário apontar os motivos da nulidade, como falta de voluntariedade, coação, ilegalidade ou descumprimento das cláusulas do acordo.
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Se o relator negar o pedido, como já ocorreu em duas decisões monocráticas, a defesa pode recorrer com embargos de declaração ou por meio de agravo regimental, solicitando que a decisão seja reavaliada pela Primeira Turma ou pelo colegiado da Corte.
Para especialistas em Direito Penal e Constitucional, outras defesas dos mais de 30 réus na ação penal também devem se concentrar nesse mesmo pedido: a anulação da delação de Cid.
A última negativa do ministro sobre essa questão teve um desfecho na semana passada, quando Moraes rejeitou a solicitação dos advogados de Bolsonaro, sob alegação de que não cabia àquele momento processual, condição contestada por especialistas. Eles afirmam que um pedido de anulação de delação premiada pode ocorrer a qualquer momento do processo, desde que exista indícios de irregularidades.
Juristas ouvidos pela Gazeta do Povo também lembram que, quando ocorre decisão monocrática para a recusa, como foi o caso, há caminho para recursos ao próprio STF.
Entre eles estão:
- Embargos de declaração: quando se pede ao juiz ou ao tribunal esclarecimentos de uma decisão que ficou confusa, contraditória, incompleta ou com erro. Não servem para mudar o resultado, mas para corrigir ou explicar melhor o que já foi decidido.
- Agravo regimental: na tentativa de levar a matéria para análise da Primeira Turma – onde o processo é julgado – ou para o Plenário da Corte. Esse recurso é usado para pedir que o próprio tribunal reconsidere uma decisão tomada por um único ministro, levando o caso para ser analisado por um grupo de magistrados.
Neste caso, a decisão para análise em Plenário seria tomada por votação na própria Turma. Para analistas, apesar das possibilidades, há forte tendência de a decisão de Moraes ser mantida pela maioria dos votos, tanto na Primeira Turma quanto no Plenário.
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Decisão que nega o pedido de anulação não se sustenta com argumentos jurídicos
Para o advogado Gauthama De Paula, da Gauthama Advocacia, especialista em Direito Penal, não se sustenta, do ponto de vista jurídico, a decisão que nega o pedido de anulação da delação premiada de Cid. Segundo ele, a própria legislação deixa claro que a voluntariedade é um requisito essencial e indispensável para a validade de qualquer colaboração premiada.
Voluntariedade significa que o acordo foi feito de livre e espontânea vontade, sem coação, ameaça ou qualquer tipo de pressão externa. A ausência desse requisito torna o acordo nulo. “É uma questão de ordem pública, que pode e deve ser analisada em qualquer fase do processo”, reforça.
A anulação não atingiria apenas o acordo em si, mas todas as provas obtidas diretamente ou indiretamente a partir dele, em respeito ao princípio constitucional que veda o uso de provas ilícitas.
Ainda segundo Gauthama, considerando que a denúncia está lastreada nesse acordo, ela também deveria ser anulada por inépcia material, ou então rejeitada por falta de justa causa, diante da violação direta ao direito de defesa.
“Ao se deparar com uma nulidade dessa natureza, o correto seria o relator suspender o processo e instaurar um incidente específico para apuração da voluntariedade do acordo, com decisão colegiada, e não simplesmente indeferir o pedido de plano”, explica.
Processo do suposto golpe tem pedidos para anular delação ignorados
De acordo com fontes envolvidas no processo, há uma série de pedidos de anulação da delação de Cid que vem sendo ignorados pelo STF. A maioria das defesas dos 31 réus no processo (com exceção de dois) apresentou pelo menos um pedido de anulação.
A defesa do ex-presidente Jair Bolsonaro, por exemplo, ainda aguarda o julgamento de um dos seus pedidos. A informação foi confirmada à Gazeta do Povo pelo advogado Celso Vilardi. O defensor de Bolsonaro, no entanto, não esclareceu do que trata o pedido a ser julgado, tampouco se pretende recorrer das decisões de Moraes que indeferiram os pedidos de anulação já apresentados.
Mesmo com fatos novos, como a acareação e o vazamento de mensagens que teriam sido trocadas entre o delator Mauro Cid e o advogado Eduardo Kuntz por meio de rede social, divulgado pela Veja, os pedidos de anulação da delação não tem prosperado. Kuntz é advogado do coronel Marcelo Câmara, também réu na ação penal sobre o suposto golpe.
Nas conversas reveladas, Cid teria dito a Kuntz que a Polícia Federal tentava manipular seus depoimentos como delator do caso e que o ministro Alexandre de Moraes, já em 2024, estava decidido sobre a condenação de Bolsonaro e dos ex-ministros e generais Augusto Heleno Ribeiro Pereira e Walter Souza Braga Netto.
Ao assinar o acordo de delação premiada com a Justiça, no entanto, Cid assumiu o compromisso de falar a verdade, manter em segredo o teor de suas revelações, não ter contato com outros investigados nem usar redes sociais. Caso a troca de mensagens seja verdadeira, as defesas dos demais dos réus podem ter mais argumentos para desqualificar as afirmações de Cid na delação.
Ricardo Fernandes, advogado de Filipe Martins que foi assessor de Bolsonaro, afirma que a Suprema Corte tem ignorado os pedidos de anulação sob o argumento de que as alegações das defesas contra a delação já teriam sido superados. “Mesmo quando há fatos novos, o argumento que tem sido utilizado por Moraes é que os pedidos de anulação foram negados no recebimento [da denúncia], por exemplo, e por isso está afastado [o pedido de anulação]”, explica o advogado. Fernandes aponta que a voluntariedade do acordo de delação, por exemplo, foi colocada em xeque com as conversas vazadas entre Cid e Kuntz. “O diálogo entre eles mostra que houve tentativa de manipulação”, afirma.
O advogado de defesa de Filipe Martins afirma ainda que os pedidos de anulação da delação só não tem sido mais frequentes porque as defesas podem ser acusadas de tumulto processual ou de tentativa de obstrução da Justiça.
Delação de Cid está cercada de controvérsias e contradições, avalia especialista
O advogado e comentarista político Luiz Augusto Módolo é enfático ao afirmar que a delação dificilmente seria aceita por um juiz de primeira instância, pois está cercada de controvérsias e contradições. Entre elas, o delator ter voltado atrás inúmeras vezes sobre sua versão dos fatos, conversas vazadas, além de suas próprias intenções. “O que ele fala, aparentemente, não é o que ele pensa”, avalia Módolo.
Para o analista, essa situação já seria suficiente para que a colaboração fosse anulada e retirada dos autos. “O melhor que poderia ser feito seria o próprio Mauro Cid, já com sua carreira e situação nos processos comprometida, vir a público e servir apenas à verdade, evitando que mais mal seja causado pelas suas falas, que já estão manchadas pela desconfiança”, completa.
O criminalista Márcio Nunes, da M Nunes Consultoria Empresarial, lembra que, na justiça brasileira, a anulação de uma delação premiada pode ser solicitada em diferentes fases do processo.
“Não existe, portanto, um impedimento absoluto para que esse tipo de questionamento seja apresentado em fases mais avançadas, embora a aceitação do pedido dependa da avaliação do juízo sobre o momento e os fundamentos trazidos”, afirma.
O doutor em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (USP) Matheus Herren Falivene explica que um acordo de colaboração premiada é considerado um negócio jurídico processual e pode ser anulado por descumprimento de cláusulas ou caso ocorra a retratação por parte do colaborador.
“Se o colaborador descumprir as cláusulas assumidas no acordo, inclusive com relação ao fornecimento de provas verdadeiras, o acordo pode ser rescindido a qualquer momento, ou seja, desfeito”, alerta.
Se ficar comprovado que o colaborador realizou o ato sem a devida voluntariedade – porque foi ameaçado ou sofreu coação indevida durante a negociação -, o acordo poderá ser efetivamente anulado e essas formas de anulação podem ser pedidas pelos delatados, por meio de suas defesas.
“Sem adentrar o mérito da questão, é legítimo que a defesa do ex-presidente Jair Bolsonaro [e de outros implicados] busque a anulação do acordo de colaboração premiada de Cid alegando que as supostas mensagens comprovariam que não houve voluntariedade na celebração da colaboração”.
A defesa do ex-presidente Jair Bolsonaro pediu a anulação e alegou que Cid violou cláusulas do acordo ao divulgar, por meio de perfis em redes sociais, informações sigilosas da colaboração e fazer críticas aos investigadores.
Segundo os advogados de Bolsonaro, as mensagens indicariam não apenas quebra de sigilo, mas também falta de voluntariedade e credibilidade do delator, o que, na visão da defesa, compromete tanto seus depoimentos quanto as provas deles derivadas, tornando imprescindível a rescisão da colaboração.
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Delação de Cid é contestada e alvo de críticas por contradições
Para justificar a recusa ao pedido de anulação da delação de Cid, Moraes fundamentou em sua decisão o artigo 402 do Código de Processo Penal, que permite apenas a solicitação de diligências diretamente relacionadas aos fatos apurados na instrução, e desde que sejam consideradas “imprescindíveis”.
Para o ministro, o pedido de anulação da colaboração, assim como outros apresentados, possui “caráter meramente procrastinatório”, e não guarda relação com a finalidade da fase processual em curso. Moraes também citou que essa mesma solicitação já havia sido feita e indeferida anteriormente, e reforçou que não cabe discutir, neste momento, a validade da delação, especialmente após o encerramento dos interrogatórios e com o processo avançando para a fase de alegações finais.
Assim, segundo o magistrado, qualquer tentativa de rediscutir o acordo de colaboração foge dos limites processuais estabelecidos e configura tentativa de atraso no andamento da ação penal.
Embora o entendimento predominante na jurisprudência seja que a delação premiada não é prova em si, mas meio de obtenção de prova, sua anulação pode ter efeito relevante sobre o processo, especialmente quando as provas dela derivadas estejam diretamente contaminadas por vícios.
No caso específico da delação de Mauro Cid, além de questionamentos sobre o momento adequado para discutir sua validade, pesam dúvidas já amplamente discutidas no meio jurídico sobre a própria consistência do acordo. A delação tem sido marcada por contradições, recuos do colaborador e vazamentos de áudios que colocam em xeque sua voluntariedade e sinceridade — elementos fundamentais para a validade desse tipo de instrumento no processo penal.
“O processo do “golpe” é frágil desde o começo. Ele só respira por aparelhos ainda porque a acusação misturou lives de 2021 com eventos de 8/1, fatos completamente desconexos. Nunca vi golpe que demora mais de dois anos para acontecer”, afirma o advogado Luiz Augusto Módolo.
Ministro usa argumentos contraditórios para acatar novas provas e recusar delação
Na mesma semana em que o ministro Alexandre de Moraes negou o pedido da defesa do ex-presidente Bolsonaro para anular a delação premiada de Cid, sob o argumento que o momento era inadequado para esse tipo de discussão, o magistrado recebeu um novo relatório da Polícia Federal (PF) com provas contra o general Walter Braga Netto e outros indiciados.
Para especialistas, as decisões indicam contradições, possíveis adequações e ajustes de prazos e ritos processuais. O ministro teria sido impreciso ao mencionar que o pedido de anulação da delação está fora de prazo, uma vez que essa solicitação pode ser formalizada pelas defesas a qualquer momento do processo.
Analistas lembram que o relatório da PF chegou ao ministro quatro meses após a denúncia apresentada pela Procuradoria-Geral da República (PGR) e após o início dos depoimentos dos réus. Esse novo documento também deve ser remetido à PGR, que decidirá se incrementará ou não à denúncia do suposto golpe.
Módolo avalia que há problema estrutural no processo penal brasileiro. Ele cita discrepância entre o Código de Processo Penal, que ainda é dos anos 1940, e o Código de Processo Civil, que tem dez anos, mais moderno e claro quanto aos momentos da produção de provas.
Na prática, segundo o jurista, essa diferença faz com que o processo penal tenha regras mais vagas, abrindo brechas para que atos processuais sejam interpretados de forma desigual. O Código de Processo Penal permite, pelo artigo 231, que documentos sejam juntados em qualquer momento do processo.
“O problema é que um relatório da Polícia Federal não é apenas um documento qualquer. Ele tem uma natureza muito mais robusta, pois serve à apuração das infrações penais e da sua autoria, conforme o próprio artigo 4º do CPP”, ressalta.
De acordo com Módolo, esse tipo de relatório, em tese, deveria ser produzido antes da abertura da ação penal, durante a fase de inquérito. Entretanto, no atual modelo adotado pelo STF nas investigações sobre os atos do chamado “núcleo do golpe”, essa lógica parece não se aplicar.
“O problema é que, como os inquéritos não acabam, e todos estão sob o mesmo relator — o ministro Alexandre de Moraes —, eles acabam circulando entre os processos, sem uma linha divisória clara entre investigação e ação penal”, explica.
Essa dinâmica geraria um desequilíbrio estrutural. “Na prática, ela favorece a acusação, que tem mais força, mais estrutura e mais tempo para alimentar os processos indefinidamente. Já a defesa segue com prazos limitados e apertados para reagir a cada novo movimento”, afirma.
Na avaliação de Módolo, esse modelo de condução processual coloca em xeque princípios fundamentais do devido processo legal, da ampla defesa e da paridade de armas, que deveriam garantir igualdade de condições entre acusação e defesa no processo penal democrático.
Moraes determina que as partes apresentem as alegações finais
O STF encerrou nesta sexta-feira (27) a fase de instrução da ação penal – em que são produzidas as provas perante o Judiciário – pela suposta tentativa de golpe de Estado.
De acordo com determinação feita pelo ministro Alexandre de Moraes, a Procuradoria-Geral da República deve se manifestar nos próximos 15 dias e fazer suas últimas considerações sobre o caso.
Após esse prazo, mais 15 dias serão destinados para a apresentação das alegações finais do delator Mauro Cid e, por fim, as defesas de Bolsonaro e dos demais réus terão o mesmo tempo para se manifestar.
Essa é a última etapa na tramitação do processo, antes que o julgamento seja marcado.
Fonte: Gazeta