A crise fiscal dos municípios brasileiros se aprofundou em 2024, e o Pará se destacou negativamente nesse cenário. Segundo a Confederação Nacional de Municípios (CNM), 60% de 91 municípios paraenses terminaram o ano “no vermelho”, acumulando um déficit de R$ 1 bilhão. As despesas somaram R$ 34,2 bilhões, enquanto as receitas ficaram em R$ 33,2 bilhões. O estado segue uma tendência nacional: mais da metade das prefeituras do país (54%) fecharam o exercício com saldo negativo, totalizando um rombo de R$ 33 bilhões. A pesquisa teve a participação de 91 dos 144 municípios paraenses.
Em um cenário de déficit fiscal crescente nos municípios paraenses, fontes ouvidas pelo Grupo Liberal apontam diferentes causas e soluções. Paulo Ziulkoski, presidente da CNM, destaca que a disparidade entre o aumento das despesas e o crescimento das receitas é estrutural, sendo mais evidente em municípios do Pará devido a dificuldades logísticas e a dependência de repasses externos.
Já Gianluca Alves, da FAMEP, sugere que o fortalecimento do controle fiscal, junto a revisões de contratos e estratégias para evitar desperdícios, é essencial para melhorar a alocação de recursos, sem comprometer a qualidade dos serviços essenciais. Luma Macedo, professora da UFPA, reforça a importância de valorizar os profissionais públicos e adotar estratégias regionais, como consórcios intermunicipais, para otimizar os serviços nos municípios menores.
Por fim, João Henrique Araújo, especialista em Gestão Pública, defende parcerias técnicas entre União, estados e municípios para promover um ciclo de transparência e equilíbrio fiscal, além de um planejamento estratégico para racionalizar os gastos com pessoal e garantir maior eficiência administrativa nas prefeituras.
“As despesas crescem mais que a receita”, alerta Ziulkoski
Para o presidente da CNM, Paulo Ziulkoski, o desequilíbrio entre receita e despesa tem se tornado estrutural.
“A Confederação vem chamando a atenção para o aumento das competências impostas aos Municípios, aumentando as despesas, ao passo que a receita não cresce no mesmo patamar. Como consequência, os Municípios têm enfrentado sucessivos déficits nos últimos anos”, afirmou.
Mesmo com o crescimento de 14% na receita dos municípios paraenses em 2024 — superior à média nacional de 10% — as despesas avançaram 12%, superando também a média brasileira de 11%. O resultado: mais gastos do que arrecadação.
Segundo Ziulkoski, a análise por porte populacional revela que o problema não é exclusivo de grandes cidades. O déficit se distribuiu entre pequenos (R$ 72 milhões), médios (R$ 693 milhões) e grandes municípios (R$ 228 milhões). Nas maiores cidades do estado, o cenário é mais grave: 65% fecharam 2024 no vermelho.
Desafios estruturais agravam cenário no Pará
De acordo com Ziulkoski, os municípios paraenses enfrentam obstáculos que não se repetem em outras regiões do país.
“Os entes locais do Pará enfrentam desafios estruturais, como grandes distâncias geográficas, dificuldades logísticas e alta dependência de receitas externas, o que pode explicar o motivo para os municípios paraenses apresentarem um déficit maior do que a média nacional”, disse.
Pessoal e custeio puxam aumento de despesas
Segundo o presidente da CNM, em 2024, as despesas públicas dos municípios do Pará cresceram R$ 3,6 bilhões em termos reais. A maior parte desse aumento veio de três frentes: custeio (42%), pessoal (27%) e investimentos (27%).
De acordo com ele, enquanto o crescimento dos salários contribuiu com 13% do aumento das despesas (abaixo da média nacional de 24%), a contratação de temporários e terceirizações representou 26% do incremento — muito acima dos 7% da média nacional.
Outro ponto de destaque foi o consumo de materiais, responsável por 20% do aumento dos gastos, também superior ao índice nacional (7%).
CNM propõe PECs para dar fôlego às finanças municipais
Diante do cenário crítico, a CNM defende mudanças legislativas para aliviar a pressão sobre os cofres municipais. Uma das principais apostas é a PEC 25/2022, que cria um adicional do Fundo de Participação dos Municípios (FPM) para compensar os meses de baixa arrecadação.
“Para os municípios paraenses, a proposta garantiria R$ 462 milhões a mais em recursos por ano”, aponta Ziulkoski.
Já a PEC 66/2023, batizada de PEC da Sustentabilidade Fiscal, busca reformar as regras de responsabilidade fiscal, renegociar dívidas previdenciárias, permitir maior flexibilidade na aplicação de receitas e garantir mais autonomia aos municípios. Para o Pará, a estimativa é de uma economia de até R$ 47 bilhões.
Dívida previdenciária é gargalo: CNM propõe reparcelamento
O presidente da CNM afirma que o reparcelamento das dívidas com o Regime Geral de Previdência Social (RGPS), que já somam R$ 20,7 bilhões apenas no Pará, seria uma medida crucial de curto prazo.
“O alongamento da dívida em até 300 meses e a troca da taxa Selic pelo IPCA como indexador podem liberar recursos importantes para os municípios”, explica Ziulkoski.
Outro avanço importante obtido pela CNM foi a redução da alíquota patronal do RGPS de 20% para 12%, que deve gerar uma economia de R$ 365 milhões em 2025 para os municípios paraenses — somando-se aos R$ 500 milhões poupados em 2024.
Planejamento e eficiência são palavras de ordem
Além das reformas estruturais, a CNM orienta que os gestores municipais adotem práticas de planejamento de médio e longo prazo, com foco em eficiência administrativa e controle de despesas.
“Em contextos de crise, é fundamental que os gestores acompanhem de perto a evolução dos gastos e ajustem suas decisões de acordo com a realidade fiscal local”, recomenda Ziulkoski.
O desafio agora, segundo ele, é equilibrar as contas sem comprometer os serviços essenciais à população — missão que exige mudanças legais, articulação política e uma gestão fiscal mais estratégica.
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“A orientação é pelo uso responsável do dinheiro público”, afirma Gianluca Alves
Diante desse cenário, a Federação das Associações de Municípios do Estado do Pará (FAMEP) tem reforçado junto aos prefeitos a necessidade de uma gestão fiscal mais responsável. O assessor jurídico da entidade, Gianluca Alves, afirma que a principal orientação tem sido o fortalecimento do controle de despesas essenciais como saúde, educação e assistência social, sem comprometer a qualidade dos serviços.
“Não significa que iremos gastar menos, muito pelo contrário, mas fortalecer a inspeção para evitar o desperdício e a corrupção nos municípios, para que estes recursos que já são escassos… sejam melhor aplicados”, destaca Alves.
A FAMEP também recomenda a revisão de contratos e licitações, o reforço na arrecadação de tributos municipais como ISS e IPTU, e o combate à sonegação fiscal — ações que, segundo a entidade, ainda enfrentam resistência política local.
Dívidas antigas e dependência de repasses comprometem pequenas cidades
De acordo com Alves, há diferenças importantes entre municípios grandes e pequenos. Os menores têm baixa capacidade de arrecadação e maior dependência de transferências federais e estaduais, o que os torna mais vulneráveis a quedas no Fundo de Participação dos Municípios (FPM).
“Geralmente, esses municípios possuem equipes administrativas enxutas e menos profissionalizadas, o que limita a capacidade de enfrentar crises fiscais”, explica o assessor.
Já os municípios maiores, apesar de contarem com receitas mais diversificadas, enfrentam pressões intensas com folhas salariais elevadas e altos custos de custeio.
Capacitação, digitalização e revisão de contratos são estratégias em curso
A FAMEP tem atuado com consultorias e oficinas sobre reestruturação de carreiras, corte de supersalários, enxugamento de cargos comissionados e terceirização de serviços não essenciais como limpeza e vigilância.
“Oferecemos ainda parcerias com a SECTET (Secretaria de Estado de Ciência, Tecnologia, Educação Superior, Profissional e Tecnológica do Pará) para digitalizar processos e reduzir custos operacionais, inclusive usando startups para otimizar a gestão pública”, informa Alves.
Segundo ele, alguns municípios já conseguiram resultados positivos com revisões de contratos e contenção de gastos com pessoal, embora os casos ainda não sejam amplamente divulgados.
Pressão por mais repasses e flexibilização de regras
A FAMEP também tem atuado como ponte entre os municípios e os governos estadual e federal, buscando ampliar os repasses como FPM, ICMS e fundos estaduais, além de facilitar o acesso a programas de reestruturação fiscal, como o antigo Programa de Apoio à Reestruturação Fiscal dos Municípios (Lei 156/2016).
Além disso, a entidade participa ativamente da Marcha a Brasília dos Municípios, organizada anualmente com a CNM, com o objetivo de pressionar por regras mais realistas para o pagamento de dívidas antigas e mais flexibilidade nas despesas obrigatórias — sobretudo após o impacto da pandemia.
“Boa parte das dívidas já vêm de um acúmulo constante de gestões anteriores… e se tornam irreais para serem pagas sem afetar de maneira agressiva o cidadão e a saúde fiscal dos municípios”, conclui Gianluca Alves.
Desafios estruturais exigem gestão eficiente e valorização dos profissionais
Para a professora Luma Macedo, especialista nas áreas de Direito Financeiro, Tributário e Empresarial da UFPA, a situação fiscal dos municípios está intimamente ligada à forma como a gestão pública é estruturada. Ela destaca que a eficiência do setor público depende diretamente da valorização dos profissionais envolvidos na execução dos serviços.
“A valorização dos profissionais que atuam no funcionamento da máquina pública é fundamental. Afinal, não adianta investir em infraestrutura, como hospitais ou escolas, se não há profissionais qualificados e bem remunerados para operar essas estruturas”, explica Luma Macedo.
A professora aponta que, apesar da necessidade de reduzir custos, as despesas com pessoal não podem ser negligenciadas. Investir em recursos humanos, com salários dignos para médicos, enfermeiros, professores e outros profissionais essenciais, é vital para garantir a qualidade dos serviços públicos em áreas como saúde e educação, especialmente quando se enfrenta inflação e defasagem salarial.
Soluções estruturais para reduzir o déficit fiscal sem comprometer a qualidade dos serviços
Para enfrentar a crise fiscal sem prejudicar os serviços essenciais, Luma Macedo sugere um conjunto de medidas que envolvem estratégias estruturais, administrativas e jurídicas. Primeiramente, é essencial que os gestores municipais adotem processos de compras mais transparentes, e que haja um planejamento orçamentário rigoroso, com o uso de ferramentas como o orçamento participativo e a análise de custo-benefício das políticas públicas.
Além disso, a regionalização de serviços pode ser uma saída para municípios menores, que têm recursos limitados. Consórcios intermunicipais podem ser criados para compartilhar estruturas e reduzir custos, sem comprometer a qualidade dos serviços prestados à população.
A importância da articulação federativa
Luma também destaca as desigualdades regionais e a extensão territorial do Pará como fatores que dificultam ainda mais o equilíbrio fiscal. Muitos municípios paraenses enfrentam limitações severas de receita própria e dependem fortemente dos repasses federais e estaduais. Isso cria uma relação assimétrica, na qual o governo estadual tem um papel crucial como articulador técnico e financeiro, principalmente para os municípios menores.
“O governo estadual precisa atuar como um facilitador, ajudando os municípios a encontrar soluções viáveis. Isso passa pela articulação política e técnica, fortalecendo as instâncias de diálogo entre os entes federativos, como conselhos e comissões interfederativas. Somente assim será possível otimizar as políticas públicas e evitar desperdícios”, observa Luma Macedo.
A professora ressalta que a coordenação entre as diferentes esferas de governo é essencial para o sucesso de qualquer medida de ajuste fiscal e para a efetividade das políticas públicas.
Fatores estruturais e conjunturais que agravam a crise fiscal
João Henrique Araújo, doutorando em Gestão de Recursos Naturais e Desenvolvimento Local da Amazônia pela UFPA e especialista em Gestão Pública, explica que a deterioração fiscal nos municípios do Pará é fruto de uma combinação de fatores estruturais e conjunturais. Um dos principais elementos é a distribuição desigual dos recursos arrecadados, onde os municípios recebem apenas 7% do total de recursos provenientes de tributos. Segundo ele, mesmo com a arrecadação própria (como IPTU, ISS e ITBI) e os repasses de ICMS e IPVA do estado, os municípios enfrentam grandes dificuldades em cumprir suas competências administrativas e garantir serviços essenciais à população.
“A demanda por melhorias é imensa, mas a contrapartida financeira não acompanha. Os prefeitos precisam ir a Brasília para negociar maiores repasses com o governo federal e congressistas, e até mesmo com organismos internacionais, como o Banco Mundial e o BID, para tentar garantir mais recursos para os seus municípios”, esclarece Araújo.
Além disso, para ele, o cenário de instabilidade econômica gerado por decisões do governo federal, como o aumento do IOF, cria uma incerteza que afeta diretamente a disponibilidade de recursos para os municípios, reduzindo ainda mais as transferências diretas e as possibilidades de arrecadação local.
A importância da gestão pública eficiente
Araújo também destaca que, apesar de avanços legais, como a Emenda Constitucional 19/1998, que inseriu o princípio da eficiência na Administração Pública, a cultura patrimonialista e provinciana ainda prevalece em muitos municípios. Essa cultura, que prioriza vínculos pessoais em vez de meritocracia, compromete a eficiência administrativa e impede que a gestão pública alcance os resultados desejados, como economicidade e qualidade no atendimento à população.
“A prática de priorizar vínculos pessoais e cargos comissionados em detrimento da meritocracia compromete a eficiência da administração pública. A gestão pública precisa valorizar a capacidade técnica e de liderança, em vez de manter práticas arcaicas que afetam diretamente a qualidade do serviço prestado”, ressaltou.
Estratégias para mitigar o déficit fiscal
Para Araújo, uma das soluções para reduzir as despesas com pessoal e melhorar a situação fiscal dos municípios seria a racionalização do quadro de servidores. Ele propõe um planejamento a médio e longo prazo, que identifique as funções estratégicas mais essenciais e minimize cargos genéricos. Isso incluiria a contratação de profissionais efetivos e qualificados, especialmente nas áreas de gestão fiscal, para otimizar a alocação de recursos.
Ele também sugere que os municípios busquem fortalecer sua capacidade administrativa, nomeando pessoas com competências e experiência para cargos de direção e assessoramento. Com essa abordagem, seria possível maximizar a qualidade da gestão, mesmo com um quadro funcional reduzido, garantindo maior eficiência no atendimento à população.
Parcerias entre União, estados e municípios para o equilíbrio fiscal
Araújo acredita que, para mitigar os déficits fiscais, a União e os estados precisam oferecer apoio técnico às prefeituras, especialmente nas áreas de gestão fiscal e planejamento tributário e orçamentário. Esse apoio poderia incluir o envio de servidores especializados para ajudar os municípios a implementar políticas de equilíbrio fiscal e promover uma cultura de transparência nas finanças públicas.
“O apoio técnico entre os diferentes níveis de governo seria um passo fundamental para melhorar a gestão fiscal nos municípios. A criação de uma cultura de transparência e o compartilhamento de boas práticas podem ajudar a criar um ciclo sustentável de equilíbrio fiscal nos municípios”, explica João Henrique Araújo.
Além disso, ele sugere uma reavaliação das regras de divisão das receitas para garantir uma distribuição mais justa e equilibrada dos recursos, favorecendo principalmente os municípios menores e mais vulneráveis.
Fonte: O Liberal