“Foi necessário um tribunal independente e atuante para evitar o colapso das instituições”, afirmou o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Luís Roberto Barroso, na segunda-feira (14), em uma carta rebatendo as falas recentes do presidente americano Donald Trump sobre o Brasil. As palavras de Barroso poderiam estar na boca de líderes autoritários mundo afora.
Em pelo menos cinco regimes recentes com características autoritárias, a defesa da democracia e das instituições foi empregada como pretexto para a repressão da oposição. Rússia, Venezuela, Nicarágua, Egito e a Bolívia comandada por Evo Morales até 2019 já usaram esse tipo de retórica.
Barroso não é o único dos ministros a adotar um discurso nessa linha. No começo de junho, Alexandre de Moraes afirmou: “Sejam inimigos nacionais, sejam inimigos internacionais, o país soberano como o Brasil sempre saberá defender sua democracia”.
Em 10 de julho, Gilmar Mendes postou no X que a “democracia combativa” brasileira vive “um momento histórico”. “O que se escreve no Brasil hoje é um verdadeiro capítulo inédito na história da resistência democrática”, disse.
Até mesmo no estilo, as falas dos ministros coincidem com as de líderes autoritários. Confira abaixo.
Rússia usa conceito de “democracia soberana”
Na Rússia, há o conceito de “democracia soberana”, criado pelo conselheiro do Kremlin Vladislav Surkov em 2006, para descrever a forma de organização política que respeitaria as particularidades históricas da Rússia. A ideia central é que a democracia russa deve ser construída sem interferência externa, preservando a soberania nacional diante de pressões do liberalismo ocidental.
O governo russo argumenta que, após o caos dos anos 1990, a estabilidade exigiria um Estado forte, capaz de garantir a vontade da maioria e proteger o país de ameaças internas e estrangeiras. Nesse modelo, eleições periódicas e altos índices de aprovação popular ao presidente seriam considerados suficientes para legitimar a forma russa de democracia – a chamada “democracia soberana”, diferente dos padrões liberais do Ocidente.
Críticos do regime, porém, sustentam que o conceito tem sido usado para justificar a concentração de poder, a limitação de liberdades civis e o enfraquecimento da oposição. Sob a retórica da “democracia soberana”, o governo exerce amplo controle sobre a mídia, restringe manifestações e impõe obstáculos à atuação de diversas organizações civis, principalmente aquelas com vínculos internacionais.
O rótulo de democracia soberana funcionaria, de acordo com as denúncias da oposição, como um escudo contra críticas de fora, enquadradas como tentativas de ingerência. Embora o regime de Putin continue realizando eleições e mantenha alguns traços externos de democracia, há grandes dúvidas sobre o grau de legitimidade do sistema.
Na Venezuela, Chávez e Maduro defendem a “democracia popular”
Desde Hugo Chávez, o regime venezuelano tem usado a retórica da “democracia popular” para justificar mudanças autoritárias e a repressão de opositores. Em sua posse, ainda em 1999, Chávez prometeu em discurso “impulsionar as transformações democráticas”.
A retórica foi mantida por Nicolás Maduro, que em seu discurso de posse em 2019 descreveu a Venezuela como uma “democracia sólida, profunda, popular e revolucionária”, construída pelos humildes contra as elites. Ele sustentou na mesma fala que era necessário fortalecer o poder do Estado “em defesa da paz e da democracia venezuelana”.
Esse tipo de discurso também se vê institucionalizado por meio de legislações como a “Lei Contra o Ódio”, de 2017, que, embora sustente valores como “democracia”, “convivência pacífica” e “direitos humanos”, tem sido usada para punir dissidentes e fechar meios de comunicação.
Em junho de 2025, em post do Instagram, Maduro voltou a afirmar que a Venezuela é “o berço da nova democracia popular e direta”, em que o povo governa sem oligarquias.
Nos últimos anos, a oposição venezuelana expôs diversos casos de fraudes eleitorais, censura, repressão armada a protestos e perseguição judicial.
Na Bolívia, Evo Morales usava discurso semelhante
Na Bolívia, Evo Morales, que comandou o país de 2006 a 2019, por três mandatos seguidos, frequentemente usou a linguagem da defesa democrática para justificar medidas de força e outras decisões.
Em 2018, por exemplo, Morales declarou que “a democracia está mais forte que nunca”, ao comparar a situação do país com os anos de sua chegada ao poder.
Daniel Ortega diz que protege a Nicarágua contra opositores de sua “democracia com o povo e para o povo”
Após os protestos de 2018, o presidente nicaraguense Daniel Ortega passou a descrever a repressão contra a oposição como uma defesa da ordem democrática diante de uma suposta tentativa de golpe. Em cadeia nacional, nos primeiros dias da crise, Ortega disse que a repressão foi necessária para proteger as instituições de “pequenos grupos da oposição” e de uma “conspiração cuidadosamente elaborada”, de acordo com o jornal nicaraguense Confidencial.
Ao longo dos anos seguintes, manteve a retórica de que as manifestações e críticas contra seu regime eram parte de um plano internacional de desestabilização, conduzido pelos Estados Unidos, e que seu governo agia para impedir que a democracia fosse destruída por “terroristas” e “traidores”.
Em 2021, quando se intensificavam as denúncias de abusos cometidos por seu regime, ele afirmou durante o Congresso Nacional Sandinista, de acordo com o site de seu partido: “Vamos defender a paz, defender os direitos humanos, que é defender a democracia com o povo e para o povo”.
Egito reprimiu violentamente opositores para salvar as instituições, segundo seu líder
O atual regime egípcio, comandado por Abdul Fatah al-Sisi, sustenta que o golpe militar de 2013 que depôs o presidente islamita Mohamed Morsi e, posteriormente, colocou-o no poder, foi, na verdade, uma salvação da democracia. Desde que chegou ao poder, al-Sisi foi reeleito duas vezes em pleitos com fortes acusações de fraude. Ele ampliou a duração do mandato presidencial para seis anos.
Em entrevista de 2019 à rede americana CBS, ele criticou as pessoas que o chamam de ditador afirmando que o povo o colocou no poder e que as medidas de repressão contra opositores foram necessárias “para restaurar a segurança”: “Trinta milhões de egípcios foram às ruas para rejeitar o regime que governava na época. Era necessário responder à vontade deles. Em segundo lugar, a manutenção da paz após esse período exigiu algumas medidas para restaurar a segurança”.
Segundo ele, manifestações de seus opositores provocaram uma situação que “poderia ter destruído o Estado egípcio e causado uma instabilidade massiva, além do que se pode imaginar”, o que justificava a repressão. “Estamos lidando com fundamentalistas e extremistas que causaram danos e mataram pessoas ao longo dos últimos anos.”
Fonte: Gazeta