Após o protagonismo brasileiro na criação do Estado de Israel, em 1948, o Brasil agora vai presidir um dos grupos de trabalho nas Nações Unidas (ONU) que discute a criação do Estado da Palestina. O convite feito ao governo brasileiro partiu da França e da Arábia Saudita e ocorre em um momento que o Brasil enfrenta ruídos com Israel.
Apesar dos problemas diplomáticos com Israel nos últimos meses, diante das sucessivas críticas da gestão petista ao país, analistas consultados pela Gazeta do Povo avaliam que o convite pode ser visto como uma oportunidade para recuperar a posição de neutralidade brasileira diante do conflito entre israelenses e palestinos. Para eles, também poder ser interpretado ainda como um reflexo da atuação da diplomacia brasileira na ONU.
Tradicionalmente, o Brasil adota uma postura equilibrada diante do impasse, mas passou a ser percebido como um ator inclinado ao lado palestino nos últimos anos. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tem adotado um tom crítico em relação a Israel devido às ações militares do governo de Benjamin Netanyahu contra o grupo terrorista Hamas na Faixa de Gaza.
O petista chegou a comparar a atuação israelense ao Holocausto praticado por Adolf Hitler na Segunda Guerra Mundial. A declaração rendeu a Lula o título de “persona non grata” por parte de Israel e estremeceu a relação entre os dois países. Para analistas, a postura “personalista” de Lula na condução de sua política externa pode ter prejuízos nessas discussões.
França e Arábia Saudita estão organizando uma conferência internacional que deve ser realizada neste mês para propor o reconhecimento internacional da Palestina. A iniciativa tem o objetivo de encontrar uma solução pacífica para o conflito israelense-palestino no Oriente Médio, que já dura décadas, em busca da existência dos dois Estados.
A iniciativa franco-saudita busca levar adiante a chamada solução de dois Estados, que propõe a criação do Estado da Palestina independente e ao lado do Estado de Israel. A proposta busca o fim do conflito na região por meio da divisão territorial, especialmente da Cisjordânia, Gaza e Jerusalém Oriental. O Brasil é um dos países a favoráveis à iniciativa.
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Discussões podem ser oportunidade para Brasil demonstrar neutralidade e força na ONU
Com o aumento da tensão na Faixa de Gaza, a comunidade internacional retomou as discussões sobre a necessidade de criar o Estado palestino como uma forma de colocar um fim no conflito. Nesse sentido, em dezembro do ano passado, a Assembleia-Geral da ONU aprovou a realização de uma conferência para discutir o tema.
A proposta teve o apoio de 157 das 193 nações que integram a ONU, incluindo o Brasil. Oito grupos de trabalho foram formados para debater a proposta e o Brasil vai presidir um deles. A chamada Conferência Internacional para a Solução Pacífica da Questão da Palestina e a Implementação da Solução de Dois Estados é organizada por França e Arábia Saudita, que convidaram outros países para copresidirem as discussões.
O Brasil, ao lado de Senegal, vai copresidir um grupo para discutir a “promoção do respeito ao direito internacional para a implementação da solução de dois Estados”.
“Os oito grupos de trabalho convocados pelas copresidências da Conferência como parte do processo preparatório, assim como a Conferência propriamente dita, são abertos a todos os Estados-membros e a representantes do sistema ONU, incluindo programas, fundos, agências especializadas e comissões regionais, além das instituições de Bretton Woods“, informou o Itamaraty.
Vitelio Brustolin, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) e pesquisador da Universidade de Harvard, também avalia que a atuação do Brasil nesse grupo pode ser uma oportunidade para reforçar o papel diplomático do país na ONU, além de ser uma forma de tentar recuperar a tradicional neutralidade brasileira.
“Ao tentar promover esse diálogo para o conflito Israel-Palestino, o Brasil contribui para a estabilidade regional, além de fortalecer sua posição como ator relevante na diplomacia global”, avalia Brustolin. O especialista pontua que o governo brasileiro tem um papel de destaque na promoção dos direitos humanos na ONU e possui um histórico positivo na organização.
Parte dessa concepção deve-se à atuação do Brasil em operações de paz, mas também pelo papel que o país desempenhou na criação de Israel. Com o diplomata brasileiro Oswaldo Aranha na presidência da Assembleia-Geral da ONU, o plano de partilha da Palestina foi aprovado em 1947 e o Estado de Israel foi criado em 1948.
A atuação de Aranha na defesa de uma solução territorial que contemplasse dois Estados — um para judeus e outro para árabes — consolidou a imagem do Brasil como um defensor do equilíbrio na região. Desde então, o país mantém sua posição favorável à coexistência de dois Estados.
Essa imagem de neutralidade, porém, tem se desgastado nos últimos anos. O professor Elton Gomes, da Universidade Federal do Piauí (UFPI), explica que tanto as políticas personalistas tanto de Lula quanto as de seu antecessor, o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), contribuíram para o afastamento da tradicional neutralidade brasileira.
Os analistas também alertam que esse desvio pode comprometer a capacidade do Brasil de atuar de forma construtiva nas negociações por uma solução duradoura para o conflito no Oriente Médio.
“Declarações em favor ou em contrário de Israel ou Palestina muito incisivas – como as que têm sido feitas dos últimos governos brasileiros – são atípicas e incomuns à história diplomática brasileira. Isso revela, no meu entendimento, uma certa contaminação da política de Estado brasileiro pela hiperpolarização que tomou a arena política doméstica nos últimos anos”, pontua Gomes.
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Ruídos de Brasil de Lula com Israel podem prejudicar negociações
Embora tenha causado desgastes com o governo israelense, Lula é favorável à solução de dois Estados e já saiu em defesa da coexistência de Israel e Palestina em diversas oportunidades. No último ano, após encontro com o primeiro-ministro da Autoridade Palestina, Mohammad Shtayyeh, o petista defendeu a existência dos dois Estados.
“Falamos da necessidade da solução de dois Estados e ele agradeceu a solidariedade e apoio do Brasil para um cessar-fogo imediato na região e o fim dos ataques que estão matando civis palestinos”, escreveu Lula no X ao comentar o encontro com Shtayyeh ocorrido na Etiópia.
Apesar de defender tal solução, as recentes declarações adotadas pelo petista podem prejudicar as discussões do governo brasileiro.
O petista adotou uma postura crítica a Israel devido à contraofensiva de Benjamin Netanyahu contra os terroristas do Hamas na Faixa de Gaza nos últimos anos. A disputa territorial na região enfrenta um novo período de tensão desde que o grupo, que vive na Faixa de Gaza, fez um ataque contra Israel e matou centenas de civis em outubro de 2023.
No ano passado, o Brasil apoiou uma denúncia da África do Sul conta Israel por suposto crime de genocídio contra a população palestina que vive na Faixa de Gaza. Os países acusam Netanyahu de promover assassinato em massa contra os moradores da região com a prerrogativa de exterminar os terroristas do Hamas. O grupo atua na Faixa de Gaza e costuma se esconder entre civis, utilizando estruturas como escolas e hospitais para dificultar sua localização.
Diante disso, a relação entre Brasil e Israel deteriorou. “Essas divergências, não necessariamente comprometem a percepção internacional sobre a diplomacia profissional e sobre o corpo diplomático brasileiro, mas comprometem a visão que se tem sobre a diplomacia personalista do governo Lula”, pontua Vitelio Brustolin.
Ou seja, em tese, a postura que Lula adotou nos últimos meses em relação a Israel — e até mesmo sobre a guerra em curso entre Rússia e Ucrânia — pode atrapalhar o papel do Brasil como mediador ou interlocutor respeitado nas discussões sobre o conflito. Especialmente porque, para que a Palestina seja oficialmente reconhecida como um país, é preciso que haja negociações com o governo israelense e também com os Estados Unidos, que é aliado histórico de Israel.
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Reconhecimento da Palestina depende de negociações com Israel e EUA
À Gazeta do Povo, Vitelio Brustolin explica que o processo de reconhecimento da Palestina como um Estado enfrenta obstáculos e resistência. “A decisão da Conferência partiu da Assembleia-Geral que, embora não tenha poder vinculativo dentro da ONU, pode influenciar no processo de reconhecimento internacional”, pontua.
De acordo com o especialista, para a criação do Estado palestino com fronteiras internacionalmente reconhecidas, é preciso que haja negociações com Israel, para definir os limites territoriais e questões relacionadas à segurança, além do status de Jerusalém.
O principal ponto de impasse é qe os israelenses reivindicam toda a cidade de Jerusalém como capital do país por questões históricas e religiosas. Pelos mesmos motivos, palestinos querem que Jerusalém Oriental seja a capital do futuro Estado da Palestina. Em 1947, ficou determinado que a cidade ficaria sob tutela internacional, sem pertencer a nenhum dos povos, mas isso não foi implementado e Israel controla toda a cidade desde 1967.
Sem que a Assembleia-Geral tenha poder vinculativo, o Conselho de Segurança da ONU poderia aprovar resoluções para admitir novos membros nas Nações Unidas. Essa saída, contudo, não é simples.
Para que uma resolução seja aprovada no órgão, ela precisa ser aprovada sem veto dos cinco membros-permanentes (China, França, Rússia, Reino Unido e Estados Unidos). Os EUA, como aliado histórico de Israel, pode barrar uma resolução a favor da Palestina e da criação do seu Estado.
O reconhecimento da Palestina como um Estado também depende das outras nações. Brustolin aponta, contudo, que este já é um caminho meio andado. “Atualmente, 143 dos 193 países membros da ONU, reconhecem o Estado da Palestina. Isso é o equivalente a 74% dos países das Nações Unidas”, pontua. O Brasil é um desses países e reconhece a Palestina como Estado desde 1975.
Fonte: Gazeta