Uma diretriz interna da Polícia Rodoviária Federal (PRF), revelada após a formatura de aproximadamente 600 novos agentes, gerou uma crise institucional e acendeu um alerta entre especialistas e representantes da categoria sobre uma tentativa de aparelhamento institucional das forças de segurança por parte do governo federal. O documento – intitulado “Plano de Ação – Recepção dos novos PRFs”, que recebeu a nomenclatura de SEI nº 65967265, consultado pela Gazeta do Povo – orientava que os policiais em processo de movimentação para fora das unidades não mantivessem “contato prolongado” com os novos servidores.
A justificativa apresentada pela Diretoria de Gestão de Pessoas da PRF era de que a medida buscava “evitar a transferência de práticas desalinhadas com o novo modelo institucional” e assegurar “referências atualizadas, condizentes com a cultura organizacional vigente”. A corporação disse que se tratava apenas de um documento interno e que foi rejeitado pela administração.
A PRF e o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), ao qual a corporação está vinculada, foram procurados pela reportagem. Apenas a Polícia Rodoviária Federal respondeu aos questionamentos. Disse que o documento era apenas uma sugestão individual, encaminhada para análise e manifestação entre áreas da corporação e estava em trâmite interno.
Afirmou que a proposta foi rejeitada no próprio processo pela Direção-Executiva da corporação e que o documento foi apenas objeto de apreciação interna, sendo rejeitado e não havendo, portanto, necessidade de apreciação externa. Elencou ainda que o texto não representa o posicionamento institucional e que a valorização dos policiais veteranos é uma diretriz permanente da administração, materializada em ações institucionais.
Em um vídeo enviado à corporação após repercussão negativa da medida, o diretor-geral da PRF, Antonio Fernando Oliveira, afirmou que o texto não seguiu trâmites usuais da atual administração e que fomenta uma ideia de segregação inaceitável.
Oliveira disse ainda que jamais coadunou ou concordará com qualquer tipo de segregação e destacou que a força da PRF reside justamente na unidade da carreira e no espírito de coletividade. “Entendo que a força dessa instituição vem muito da nossa carreira única e de todos nós sermos iguais, sermos verdadeiramente uma família”.
Ele enfatizou que a construção de uma PRF mais forte se dá por meio da colaboração e troca de conhecimento entre gerações. Profissionais e especialistas em segurança avaliam que o vídeo só foi veiculado pelo diretor diante da ampla repercussão negativa do documento.
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O risco iminente do aparelhamento das instituições
Além da reação corporativa, juristas e especialistas em segurança pública veem o episódio envolvendo a PRF como mais um indício de tentativa de aparelhamento das forças de segurança federais por parte do governo federal.
Isso viria de forma conciliada à apresentação da criticada PEC da Segurança Pública, a qual, para analistas, centraliza de forma excessiva as ações de segurança nas mãos da União, retirando atribuições e competências de estados e municípios. O Ministério da Justiça nega que a intenção seja essa.
“A substituição de efetivos experientes por recém-formados, aliada à diretriz de isolamento dos veteranos na PRF, pode ser interpretada como uma forma de moldar a cultura institucional da Polícia Rodoviária [Federal] segundo uma nova orientação político-ideológica”, alerta o cientista político e pesquisador em segurança pública Marcelo Almeida.
Para o advogado Luiz Augusto Módolo, apesar de não ser uma orientação explícita de aparelhamento das forças de segurança, pode indicar, nas entrelinhas, a tentativa de exercer poder ao longo de anos, mudando regras internas até que um dia nem sequer se saiba quem ou o que motivou determinado regramento.
O especialista avalia que se observa um movimento coordenado de renovação de quadros com forte controle narrativo, o que é extremamente preocupante quando se trata de uma instituição de Estado, que deveria ser independente e técnica.
O advogado Alex Erno Breunig, especialista em segurança pública, avalia que, assim como ocorre em qualquer área, as escolas de formação de policiais nunca conseguirão ensinar todos os detalhes da profissão aos novos alunos/policiais.
“Nesse sentido, a troca de experiências entre os novos policiais e os que possuem larga experiência não só é desejável, mas necessária”, completa. Para Breunig, a determinação soa como preconceituosa em relação à idade e a um pretenso “desalinhamento ao novo modelo institucional”, ao qual não se sabe exatamente do que se trata.
Ele avalia que se pode inferir que a intenção é impor uma metodologia específica e alinhada aos valores e visão do atual governo, para que a PRF atenda aos seus interesses de médio e longo prazos. “Ou seja, atendendo a uma política de governo, não a uma política de Estado”. Para ele, a “seleção de candidatos e sua formação poderão sim representar um aparelhamento das instituições”.
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Federação diz que documento foi desrespeitoso, discriminatório e injustificável
A publicação da norma, considerada ofensiva e segregacionista, duramente questionada por especialistas em segurança foi alvo de críticas também da Federação Nacional dos Policiais Rodoviários Federais (FenaPRF), que representa cerca de 17 mil servidores ativos e aposentados.
Em nota, a entidade classificou o conteúdo como “desrespeitoso, discriminatório e injustificável”. Para a federação, a diretriz rompe com a tradição de valorização dos policiais veteranos e mina a coesão interna da instituição. “A história da PRF foi construída pela dedicação de policiais que, por décadas, consolidaram a credibilidade da instituição. Rotulá-los como potenciais ameaças à formação dos novos colegas é inadmissível”, afirma o comunicado (leia manifestação abaixo na íntegra).
Diante da repercussão negativa, a Diretoria-Executiva da PRF determinou a exclusão do item 5 do documento, que trazia a orientação mais polêmica. À categoria, a Direção alegou se tratar de um erro de redação e procurou minimizar os efeitos da medida. No entanto, a FenaPRF não se deu por satisfeita e cobrou uma retratação pública da Direção-Geral, com o reconhecimento formal da importância e do legado dos veteranos da corporação.
“É fundamental que se valorize o conhecimento e a experiência acumulados por quem serviu ao país por décadas, e não que se os trate como obstáculos à modernização institucional”, diz a FenaPRF.
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Silenciar veteranos é enfraquecer a Polícia Rodoviária Federal
A FenaPRF alertou ainda que a pluralidade de experiências e a convivência entre gerações são fundamentais para o fortalecimento da PRF e que “tentar silenciar os veteranos é enfraquecer a instituição”.
Para Almeida, a crise provocada por esse documento evidencia a necessidade de maior transparência e de controle externo sobre políticas internas não apenas da corporação, mas do sistema de segurança do governo como um todo. “A medida não apenas é injustificável como pode representar uma tentativa disfarçada de reorientação institucional”. Ele avalia ser urgente que a sociedade exija explicações e garantias de que a PRF continuará a agir como polícia de Estado, e não de governo.
Apesar da exclusão do item controverso, o episódio deixa alertas e amplia o debate sobre os rumos da corporação e o papel das forças de segurança no atual cenário político brasileiro. “O governo já tenta centralizar a segurança pública ao propor uma PEC que tira poderes de estados e municípios, medidas assim são preocupantes”, destaca o especialista em segurança pública Sérgio Gomes, que é servidor aposentado das forças federais de investigação.
Gomes reforça que a impressão de todos é a de que a administração da PRF quer implantar nova ideologia aos novos PRFs, afastando os valores policiais tradicionais que sempre nortearam e foram essenciais à credibilidade alcançada pela instituição nos últimos 30 anos.
Para os especialistas, é necessária pressão por uma retratação oficial e por respostas mais contundentes, tanto da PRF quanto do Ministério da Justiça. “Parece um sinal claro, apesar de depois revogado diante da má receptividade, de aparelhamento institucional”, destaca.
Movimento pode deslegitimar a PRF
O advogado Luiz Augusto Módolo vê com preocupação a diretriz interna da PRF. Para ele, a medida, apesar de revogada, revela um movimento mais amplo de apagar o passado e deslegitimar saberes construídos ao longo do tempo.
“A esquerda está sempre numa tentativa de fazer tabula rasa de tudo, talvez numa tentativa de fazer com que percamos modos de nos comparar com o passado. Quando se perde isso, o presente ruim que eles constroem fica mais palatável”, afirma.
Para o advogado, episódios pontuais de abusos por parte de agentes — como o caso de um civil sufocado e morto em um camburão em 2022 — não justificam a estigmatização de toda a corporação. “Muito menos autorizam jogar fora a experiência acumulada da PRF e dos policiais, representada em servidores com anos ou décadas de carreira”.
Ele lembra que, partindo do princípio da boa-fé, presume-se que esses servidores sabem se portar como policiais e estão imunes a modismos não testados pelo tempo e que o conhecimento prático dos PRFs, literalmente com anos de estrada, é insubstituível. “Eles têm saber acumulado, conhecimento do terreno, mapas mentais da localização de pontos perigosos nas estradas. Sob a ótica conservadora, que valoriza o aprendizado com base no que já foi feito, essa tentativa de apagar o passado é até contraproducente”, avalia.
Ele ainda aponta que a medida incorre em preconceito etário. Destaca que os responsáveis pela norma teriam sido preconceituosos, incidindo no que a esquerda chama de “etarismo”. “O próprio presidente Lula tem quase 80 anos. Ele deveria ser isolado e não conversar com políticos mais jovens então?”, questiona.
Veja na íntegra a Nota de Repúdioda da FenaPRF
A Federação Nacional dos Policiais Rodoviários Federais (FenaPRF), entidade representativa de mais de 17 mil servidores da ativa e aposentados, manifesta seu veemente repúdio à forma como foi redigido o item 5 do documento “Plano de Ação – Recepção dos novos PRFs” (SEI nº 65967265), parte integrante do Processo nº 08650.154011/2025-22, confeccionado pela Direção da Polícia Rodoviária Federal.
O referido trecho, ao recomendar que os policiais em processo de movimentação “não mantenham contato prolongado com os novos PRFs”, com o objetivo declarado de evitar a “transferência de práticas desalinhadas com o novo modelo institucional”, é inaceitável sob qualquer ótica.
A insinuação de que servidores públicos — muitos com mais de 20 ou 30 anos de dedicação à Polícia Rodoviária Federal — seriam vetores de uma cultura negativa, desalinhada ou contraproducente é desrespeitosa, discriminatória e injustificável. Trata-se de uma afirmação que, na prática, contribui para a fragmentação do corpo funcional da Instituição e promove um clima de divisão e desconfiança entre gerações de policiais.
A história da PRF foi construída com base na experiência, no comprometimento e no profissionalismo desses policiais, que, ao longo de décadas, consolidaram a credibilidade da nossa Instituição perante a sociedade brasileira. Rotulá-los como potenciais ameaças à formação de novos colegas não apenas fere sua honra funcional, mas também compromete o espírito de coesão institucional que tanto se busca fortalecer.
Fonte: Gazeta