Analistas ouvidos pela Gazeta do Povo avaliam que o projeto da deputada federal Fernanda Melchionna (PSOL-RS), que quer impedir a aplicação da Lei Magnitsky no Brasil, dificilmente deve prosperar. Eles destacam que a legislação brasileira não tem efeito sobre leis estrangeiras e sobre empresas privadas que operam no exterior. Parte deles alerta sobre a possibilidade de a proposta agravar as tensões entre Brasil e Estados Unidos.
Batizado pela autora de “PL da Soberania Financeira”, o texto quer proibir bancos e demais instituições financeiras brasileiras de bloquearem, suspenderem ou restringirem contas com base em sanções impostas por governos estrangeiros, sem homologação de autoridade nacional.
A Lei Magnitsky, usada pelos EUA em julho para sancionar o ministro Alexandre de Moraes (STF), permite punir estrangeiros acusados de violar direitos humanos, congelando bens e restringindo negócios nos Estados Unidos ou em dólares.
Para o professor Manuel Furriela, especialista em Direito Internacional, o projeto que tenta barrar os efeitos da Lei Magnitsky no Brasil “não tem nenhuma chance de avançar”. Segundo ele, a proposta é ineficaz do ponto de vista jurídico, já que uma lei brasileira não pode alterar uma legislação americana — mesmo que afete instituições dos EUA que atuem no Brasil.
O especialista lembra que a legislação americana determina sanções e penalidades para pessoas que desrespeitam os direitos humanos, o Estado Democrático de Direito, pessoas que não permitem o combate à corrupção. Além disso, a Magnitsky aplica sanções dentro dos Estados Unidos de forma direta com bloqueio de contas bancárias, proibição de entrar no país, entre outras medidas de retaliação.
Furriela ressalta que, mesmo em casos de efeitos indiretos no Brasil, como o bloqueio de serviços prestados por empresas americanas instaladas no país, as regras aplicáveis seriam as da legislação brasileira — o que já é previsto e não exigiria uma lei adicional, porém, essas empresas ficam sob risco de sancionamentos secundários americanos.
Na prática, as empresas brasileiras já precisam cumprir a legislação nacional. No entanto, podem optar por seguir também as determinações da Lei Magnitsky dos Estados Unidos — por exemplo, bloqueando um serviço ou conta. Nesse caso, a decisão continuaria sujeita às leis brasileiras, mas colocaria a empresa diante de um dilema: correr o risco de sofrer penalidades no Brasil por causa da medida ou, se não adotá-la, enfrentar sanções previstas pela lei americana.
Para o doutor em Ciência Política Leandro Gabiati, a apresentação do projeto de lei que pretende impedir a aplicação da Magnitsky no Brasil tem caráter essencialmente simbólico e não deve gerar impactos concretos nas relações entre Brasil e Estados Unidos. “Não há chances de aprovação dessa proposta e, portanto, ela não altera a situação na relação bilateral”, afirma Gabiati.
Na quarta-feira (13), a Gazeta do Povo já havia revelado que bancos brasileiros ainda não sabem como agir no caso da aplicação da Lei Magnitsky a Alexandre de Moraes e estão avaliando os possíveis impactos das sanções impostas pelos Estados Unidos. A inclusão de Moraes na lista do Escritório de Controle de Ativos Estrangeiros (Ofac), acusando de censura e prisões abusivas, impõe restrições, como o bloqueio de bens nos EUA e a proibição de transações com empresas e cidadãos americanos.
Diante disso, instituições financeiras no Brasil consultam especialistas para entender até que ponto devem seguir as exigências da lei americana, considerando o risco das sanções secundárias, como multas e perda de acesso ao sistema financeiro internacional — mesmo em operações feitas a partir do Brasil.
Há quem defenda que os bancos brasileiros não seriam obrigados a acatar medidas estrangeiras sem respaldo nacional, mas, na prática, o domínio dos EUA sobre o sistema financeiro global dificulta qualquer resistência. As discussões agora envolvem possíveis medidas diplomáticas e judiciais para contestar ou minimizar os efeitos das sanções, enquanto Moraes e autoridades próximas avaliam caminhos políticos para reverter ou atenuar a situação.
Especialistas avaliam que empresas estrangeiras constituídas no Brasil precisam atender à legislação brasileira, mas sob o risco de sanções americanas, no caso de não bloquearem perfis em redes sociais de big techs americanas, de limitarem acessos e transações bancárias, assim como operações em dólares.
Possíveis efeitos e aumento das tensões entre Brasil e EUA com tramitação de PL
Para o especialista em Direito Internacional Manuel Furriela, mesmo sem chances reais de aprovação, a mera tramitação do projeto pode aumentar o atrito diplomático entre Brasil e Estados Unidos. “
A iniciativa pode ser vista como mais um obstáculo nas relações bilaterais, somando-se a tensões já existentes. O diferencial é que agora o desgaste não viria apenas do Executivo, mas também do Legislativo, o que pode potencializar o impacto político”.
Segundo Furriela, o que pode ser discutido é se a Magnitsky deve ser aplicada a determinados casos, como o do ministro Alexandre de Moraes. “No meu entendimento, não se trata de hipótese prevista na lei americana. Mas isso é diferente de querer extinguir, por completo, a eficácia de uma norma moralizadora”, afirma.
O doutor em Direito Internacional pela Universidade de São Paulo Luiz Augusto Módolo explica que, ao adotar sanções internacionais, como as impostas recentemente ao ministro Alexandre de Moraes, o governo americano já considerava previamente todos os possíveis efeitos e reações de países estrangeiros.
“Quando começaram as sanções, eles já fizeram sua “precificação” política e econômica. Ou seja, já calcularam os custos e possíveis respostas. Esse tipo de projeto não muda o quadro e não preocupa os Estados Unidos”, avalia.
Módolo reforça que, embora o texto em debate no Congresso possa gerar discussões internas e até algum desgaste político no plano diplomático, ele não altera o núcleo de poder das sanções, que seguem sendo aplicadas dentro da jurisdição americana e no âmbito de sua rede de influência internacional.
Leandro Gabiati lembra que o Congresso Nacional não atua de forma coesa ou homogênea, e que a aprovação de uma lei como essa só teria relevância se o Parlamento realmente chegasse a um consenso para implementá-la.
“Nesse caso, haveria mais uma variável a aumentar a já complexa relação bilateral entre Brasil e EUA. Mas, como se trata apenas de um projeto apresentado por um partido minoritário, sem chances de prosperar, a ação se torna menos relevante em termos políticos e fica apenas no plano simbólico”, opina.
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Lei Magnitsky é fundamental para o combate à corrupção, ações contra liberdades e democracias
Manuel Furriela afirma que a Lei Magnitsky é relevante para o combate à corrupção e que tentar eliminar a eficácia da norma, com uma lei brasileira, gera um debate sobre a importância da medida. “Vejo como algo que não deva prosperar, porque ela é uma lei, ela é uma norma moralizadora”.
Na rede social X, a deputada Fernanda Melchionna afirmou que a proposta é uma reação a “ataques imperialistas” e que o Brasil não deve se submeter a imposições unilaterais de potências estrangeiras.
Módolo afirma que a reação dos Estados Unidos ao projeto de lei deve ser de completa indiferença. Segundo ele, a iniciativa não afeta de forma concreta o alcance das sanções americanas e dificilmente provocará qualquer alteração na postura de Washington.
“Os EUA só vão rir dessa iniciativa. Eles sabem do próprio poder”, afirma Módolo.
Já Leandro Gabiati avalia que o PL tem mais um posicionamento simbólico do que operacional. Ele avalia que, no campo da diplomacia, o ator central sempre será o Poder Executivo, responsável por conduzir as negociações e o diálogo com outros países. “É muito mais relevante, por exemplo, o diálogo entre ministros de ambos os países”, pontua.
Fonte: Gazeta