A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que põe fim ao foro privilegiado voltou ao centro do debate em Brasília e entrou na lista de prioridades após a obstrução protagonizada pela oposição no Congresso. A proposta retira de grande parte das autoridades a prerrogativa de serem processadas e julgadas apenas por tribunais superiores. Ela vem sendo debatida como uma forma de diminuir o poder de pressão política do Supremo Tribunal Federal (STF) contra parlamentares que queiram defender medidas de fiscalização e regulação da Corte.
Aprovada por unanimidade no Senado em 2017, a Proposta de Emenda à Constituição ainda precisa ser aprovada na Câmara para que apenas os presidentes da República, da Câmara, do Senado e do Supremo Tribunal Federal (STF), além de seus vices, mantenham o foro privilegiado.
A proposta que tramita no Congresso altera ou revoga diversos dispositivos constitucionais para acabar com a prerrogativa de foro nos casos de crimes comuns. Os crimes comuns são infrações penais previstas no Código Penal ou leis penais especiais, sem relação direta com a função pública exercida. São exemplos de crimes comuns: corrupção, lavagem de dinheiro, homicídio, lesão corporal, falsidade ideológica, tráfico de drogas.
Entre os pontos principais a serem alterados pela PEC do foro privilegiado estão:
- Vedação expressa: proíbe a criação de foro especial para crimes comuns.
- Regra de prevenção de jurisdição: garante que, após o início de um processo penal contra um agente público, a mesma vara continue julgando ações posteriores com o mesmo objeto e causa.
- Extinção de foros: retira de tribunais superiores a competência para julgar crimes comuns cometidos por governadores, desembargadores, membros do Ministério Público, ministros de tribunais superiores e parlamentares.
- Revogações específicas: elimina o foro de prefeitos, de deputados e senadores.
- Proibição nas Constituições estaduais: veda que estados criem dispositivos semelhantes.
O projeto também pode afetar casos de grande repercussão. Se aprovada nos termos originais, a PEC retira do STF a competência para processar ex-presidentes por crimes comuns. Isso poderia transferir para a primeira instância parte das investigações contra o ex-presidente Jair Bolsonaro, embora a decisão final sobre processos em andamento caberá ao próprio Supremo.
Para o advogado Leonardo Corrêa, mestre pela Universidade da Pennsylvania e presidente da Lexum – associação fundada por juristas contra o autoritarismo do Supremo Tribunal Federal (STF) -, manter no STF casos de quem não ocupa mais o cargo contraria a lógica da proposta. “O foro é vinculado à função, não à biografia. Prorrogar esse privilégio por interpretação é perpetuar aquilo que a PEC quer corrigir”, afirma Corrêa.
O professor de Políticas Públicas Eduardo Galvão, do Ibmec Brasília, também entende que a aprovação da PEC pode deslocar determinadas investigações da alçada do Supremo Tribunal Federal para instâncias inferiores, desde que o investigado não ocupe mais cargo que justifique o foro.
“No caso de Jair Bolsonaro, isso significaria transferir parte das ações para a primeira instância, com novas dinâmicas processuais e prazos. Isso não encerra investigações, mas muda o tabuleiro de jogo, alterando quem conduz as peças e, possivelmente, o ritmo da partida”, avalia Galvão.
Tramitação na Câmara pode avançar com apoio do Centrão
A PEC do foro privilegiado já foi aprovada no Senado, teve avanços na Câmara, porém, desde 2018 aguarda para ser votada pelos deputados no plenário. Ao longo dos anos, diversas tentativas de inclusão da proposta na pauta de votações foram feitas, mas nenhuma logrou êxito.
Apesar de o texto estar parado há anos, a conjuntura atual – marcada por críticas ao STF e por disputas entre poderes – reacendeu o interesse pela proposta.
A recente mobilização tem o apoio de partidos do Centrão, incomodados com o que consideram avanço do Judiciário sobre as prerrogativas do Legislativo. O deputado Maurício Marcon (Podemos-RS) diz que a pauta deve avançar porque “o Centrão está bastante incomodado com o esvaziamento do poder da Casa” e porque o texto já passou no Senado sem votos contrários.
Ao analisar a adesão dos partidos do Centrão à pauta, Nauê Bernardo Pinheiro, professor de Direito do Ibmec Brasília, aponta que existe um senso de que há um avanço do STF sobre as prerrogativas dos parlamentares. “Esse senso parece estar associado a um descontentamento a respeito do processo envolvendo as emendas parlamentares”, acrescenta Pinheiro.
Ele se refere ao fato de que o STF tem investigado o repasse de verbas federais feitos por deputados e senadores para suas bases políticas por meio de emendas ao Orçamento. Essa ferramenta dá autonomia ao Poder Legislativo, que não precisa mais barganhar apoio ao Executivo em troca dessas verbas. Por outro lado, há indícios de que verbas de algumas emendas tenham sido desvidas irregularmente.
Mas, apesar o apoio dos partidos do Centrão, o avanço da PEC do foro ainda depende mais de cálculos políticos do que de convicção jurídica. Um dos empecilhos é a disposição do presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), de colocar a pauta em votação. Se Motta for convencido da importância da PEC, o desafio passa a ser aprovar a PEC em dois turnos na Câmara, com apoio de pelo menos 308 deputados em cada um deles.
Especialistas avaliam riscos e salvaguardas da PEC do foro privilegiado
Uma das críticas à PEC é que autoridades ficariam mais vulneráveis a perseguições políticas de juízes e promotores locais. Para o professor Eduardo Galvão, esse risco existe, mas pode ser mitigado. “É necessário reforçar mecanismos de controle e filtros processuais, garantindo que denúncias tenham base jurídica antes de seguirem adiante”, defende.
Já o advogado Leonardo Corrêa rejeita a premissa de que o foro seja indispensável. “Se o sistema não é confiável para julgar um deputado ou governador sem cair na vingança política, então já não temos Estado de Direito. Nos EUA, nem o presidente tem foro para crimes comuns, e o sistema funciona”, argumenta.
Há também discussões sobre incluir no texto salvaguardas que limitem o alcance das investigações, como a exigência de autorização do Congresso para que inquéritos contra parlamentares avancem. O professor Nauê Bernardo Pinheiro avalia que espaço político para esse tipo de mudança existe, mas que dependerá da avaliação dos parlamentares sobre “ganhos concretos” para os deputados e senadores.
Foro privilegiado: do “escudo” à perseguição
O foro por prerrogativa de função, como o foro privilegiado é tecnicamente chamado, foi criado para proteger o exercício do cargo contra perseguições políticas por juízes e promotores locais. Mas, ao longo do tempo, ganhou fama de “escudo” para a impunidade, por concentrar no STF e no Superior Tribunal de Justiça (STJ) processos penais contra parlamentares, ministros de Estado e outras autoridades.
Quando uma pessoa com foro privilegiado comete um crime comum — como corrupção, peculato, falsidade ideológica —, ela não é julgada na primeira instância, mas sim diretamente pelo tribunal definido pela Constituição. No caso de ministros, parlamentares e outras autoridades federais, o julgamento ocorre no STF. Governadores, por sua vez, são julgados pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Desde maio de 2018, o STF restringiu o alcance do foro para deputados e senadores. Após a decisão, o benefício só vale para crimes cometidos durante o mandato e relacionados à função. Além disso, se o crime não tiver relação com o cargo, o processo vai para a primeira instância. Essas limitações, porém, não foram aplicadas a todos os outros cargos com foro. Por isso, ainda há milhares de autoridades que mantêm a prerrogativa mesmo para crimes sem vínculo com a função.
Desde que a proposta foi apresentada no Congresso, em 2013, críticos apontam que o STF não tem estrutura para julgar centenas de casos criminais, resultando em lentidão e, muitas vezes, prescrição.
No entanto, o argumento inicial para a criação do foro – de evitar perseguições – tem sido utilizado contra a prerrogativa. Na avaliação de parlamentares dispostos a aprovar o fim do foro privilegiado, as perseguições políticas passaram a ter origem na própria Suprema Corte.
O cientista político Luiz Jardim explica que o foro surgiu em um contexto histórico em que juízes locais estavam submetidos ao poder político regional. “Era uma ideia lógica: evitar que os “fidalgos” fossem julgados por magistrados dependentes dos chefes políticos. Mas, com o tempo, essa proteção se degenerou”, afirma.
Hoje, segundo Jardim, o mecanismo se transformou numa “espada de Dâmocles” – ameaça constante que paira sobre alguma autoridade – sobre o Parlamento, permitindo ao STF manter sob sua guarda processos contra deputados e senadores, o que cria margem para pressão política contra medidas de regulação do Supremo.
O professor Eduardo Galvão reforça o entendimento atual de parte dos políticos sobre o fim do foro privilegiado. “O movimento atual inverte a lógica: antes, lutava-se para obter foro. Agora discute-se limitar ou extinguir esse benefício, o que exige repensar como proteger a integridade das funções públicas sem criar privilégios excessivos”, salienta.
Para Luan Sperandio, analista político e diretor do Ranking dos Políticos, a estratégia de derrubar o foro agora também serve para “diminuir a barganha e a exposição que os ministros do STF possuem ao centralizar todos os inquéritos e ações penais contra congressistas”.
Além da Constituição, atualmente o foro privilegiado também está em constituições estaduais, além de leis orgânicas. Assim, há foro privilegiado não só no plano federal, mas também nos estados e até nos municípios. Além de parlamentares, há foro privilegiado para ministros de tribunais superiores, procurador-geral da República e comandantes das Forças Armadas, desembargadores, conselheiros de tribunais de contas e procuradores-gerais de Justiça, por exemplo. Isso faz com que haja estimativas de que cerca de 55 mil autoridades no país têm algum tipo de foro.
Fonte: Gazeta